A arte da fuga
Na semana em que um organismo europeu responsável e geralmente rigoroso veio dizer que o desemprego em Portugal atingiu os 11 por cento em maio e junho, tendo caído em julho para os 10,8 por cento, o primeiro-ministro não teve nada a dizer sobre o assunto. Recusou-se a comentar e mandou um secretário de Estado enfrentar as câmaras de televisão para pôr em causa a validade desses números e a entidade que os subscreveu. Não é bonito, nem politicamente aceitável, nem sequer útil para o primeiro-ministro imaginar que se resguarda e passa incólume pelas más notícias só porque foge de as comentar.
José Sócrates tem o direito de escolher os temas sobre os quais pretende pronunciar-se e de falar ou de se remeter ao silêncio quando os jornalistas lhe fazem perguntas sobre assuntos incómodos. Mas cada português tem, por seu lado, o direito de avaliar o que diz o chefe do Governo e o que prefere calar, formando o seu juízo sobre tal atitude. E a atitude de Sócrates neste caso foi especialmente chocante por razões óbvias. Porque, desde sempre, o primeiro-ministro aproveita todos os sinais positivos, mesmo os mais insignificantes, para proclamar um otimismo infrene e perigoso, já que ilude os cidadãos quanto à situação real do país. E porque, na semana anterior à divulgação destes números, multiplicou esses discursos com base em valores do crescimento económico que, sendo positivos em relação às previsões do Governo, se mostram irrelevantes ou mesmo negativos no confronto com os índices de crescimento na Europa em que a economia portuguesa se insere. Além disso, são dramáticos quando tomados na perspetiva de recuperação dos níveis de emprego nos tempos mais próximos.
Ora, um primeiro-ministro que sobrevaloriza de forma sistemática o que está menos mal mas ignora ostensivamente o maior problema que a sociedade portuguesa enfrenta é um primeiro-ministro que deliberadamente se alheia da realidade nacional. A velha coragem e frontalidade com que fez o seu caminho nos primeiros tempos de mandato deram lugar a esta arte da fuga em que se especializou, mas que não o enobrece, nem à função que desempenha.
O polvo e a nuvem
Cada um de nós é sempre mais do que um, pelo que não devemos surpreender-nos com o Carlos Queiroz que se apresentou na SIC para uma entrevista serena, segura e queixosa acerca do caso que o envolve. Aquele não era o mesmo Carlos Queiroz que recebeu uma brigada antidoping com impropérios, que se envolveu à pancada com um comentador desportivo em pleno aeroporto de Lisboa, que insultou publicamente um jornalista do "Sol" para se desresponsabilizar de uma observação que fizera, ou que, numa entrevista ao Expresso, acusou um vice-presidente da sua entidade patronal de ser a "cara do polvo" que o quer derrubar. Mas houve um momento, na SIC, em que os dois Carlos Queiroz se cruzaram, um momento em que o sereno entrevistado denunciou o outro Carlos Queiroz que há em si: quando explicou o significado da palavra "polvo".
Disse ele, sem se rir do que dizia, que polvo equivale a "nuvem", sendo "nuvem" uma metáfora muito pessoal da desgraça que lhe aconteceu. Ora, o professor de Educação Física e ainda selecionador nacional andou na Universidade, é um homem com mundo, deve passar os olhos pelos jornais e pelas televisões, deve ler o seu livro de vez em quando. Mas afirma não conhecer a conotação da palavra polvo com a máfia. E quando Rodrigo Guedes de Carvalho, já enfadado com a desfaçatez, lembrou que até houve uma série televisiva sobre o assunto, ele insistiu no seu cândido entendimento, explicando que talvez não estivesse em Portugal quando essa série passou por cá.
Alguém que assim procede, em vez de assumir e justificar o que diz ou, então, apresentar as devidas desculpas - o mesmo que lhe teria ficado bem fazer perante os médicos da operação antidoping, quando os recebeu com injúrias na Covilhã -, dá de si a imagem de quem se dispõe a fazer o que for preciso, não para defender a honra e a reputação, mas apenas para se safar de uma embrulhada. Algo que liga mal, muito mal, com a função que desempenha na condução de jovens, os quais, nem por serem milionários, na maior parte dos casos, deixam de precisar do exemplo de quem os dirige. Assumir a responsabilidade quando se erra também é uma forma de se defender a honra e a reputação.
Os vários casos Queiroz e os processos a que a cena da Covilhã deu origem puseram a nu um selecionador vulnerável por comportamentos impróprios, além de uma Justiça desportiva que julga conforme as conveniências de quem tem mais força na Federação e que imita o que tem de pior a Justiça portuguesa nos processos ditos mediáticos. Puseram igualmente em evidência a irresistível tentação do Governo de interferir nessa mesma Justiça, de forma direta ou enviesada. Neste ponto tem Carlos Queiroz toda a razão. Mas isso, infelizmente, já não lhe chega para continuar a ser, como pretende, um selecionador nacional com todas as condições para o desempenho do cargo. Serve apenas para tornar claro que, além dele, há mais gente no meio que diz e faz o que não deve - desde os órgãos dirigentes da Federação de Futebol ao secretário de Estado do Desporto. E que uma varredela geral seria a melhor forma de resolver o assunto a favor da imagem e do trabalho da seleção nacional, agora em "piloto automático". Só que essa varredela, bem o sabemos, jamais ocorrerá. Não está na natureza de quem manda ou governa em Portugal resolver os problemas pela raiz, seja qual for a instituição em crise.
in "EXPRESSO"
10/09/10
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