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Celebremos o livro
Celebremos o livro
seiscentos anos depois
O livro é motivo de celebração. As artes sobre as quais se moldou, as pessoas que convoca, o autor como máximo responsável. Uma construção que leva mais de quinhentos anos, sem esmorecimento.
O livro e as bibliotecas fazem-se
com pessoas, dirigem-se às pessoas. Não são virtuais, objecto e espaço
bem reais a ganharem sempre novas dimensões porque existem para as
pessoas. Como as aulas sem o contacto interpessoal perdem grande parte
do seu poder, também os livros de papel construídos não prescindem das
pessoas e estas não os conseguem substituir apenas pela transmissão fria
e impessoal dos seus textos abdicando do contacto que sublinha toda a
diferença. Já não subo àquele patamar de uma percepção bem mais fina e
subtil em que o tacto e o cheiro se tornam absolutamente
insubstituíveis. Não vou invocar o pormenor da tinta ou do tipo de
letra, da textura do papel, à forma como ele foi dobrado e cortado. Ou à
encadernação manual e não mecânica. O que aqui se esquematiza são as
artes manuais que permitiram construir o livro como o conhecemos desde
os idos de 1450. Desconhecendo toda a história do livro, o seu rigor e
exigência, podemos chegar ao absurdo de transmitir a ideia de que o
livro é obra de um estalar de dedos. Não foi. Mesmo se a produção actual
tende a um afinamento que torna a edição mais económica, a uma maior
divulgação, não nos será permitido apagar o passado e todo o processo de
construção, com tanto de laborioso como de belo. As outras artes
manuais estão em condições idênticas, os resultados em massa de hoje
satisfazem a maioria de os utilizadores, então para quê a preocupação na
preservação desta ou daquela outra arte, de produção lenta e repleta de
protocolos, logo cara? Pergunta difícil cuja resposta traz a marca da
nossa civilização, onde chegámos, como nos olhamos e respeitamos. A
diversidade que age como factor de igualdade, a capacidade de aprender e
respeitar.
Tal como hoje mercê da profunda crise sanitária que nos corrói, os
estudantes têm aulas em ambiente virtual que não satisfaz plenamente
quer os alunos quer os professores e todos ambicionam pelo dia em que se
reunirão de novo no espaço físico da aula, também os livros em papel
não dispensarão os seus leitores que, para além da leitura, se
entreterão a riscar, ou dobrar os cantos, a folhear de trás para a
frente à procura daquela frase ou daquela descrição que mais lhes
prendeu a atenção. Os livros quando alinhados na estante de uma qualquer
biblioteca ganham o poderoso efeito de induzirem à descoberta, de
conduzirem os leitores a estabelecerem relações inesperadas. Este poder
de os livros não é substituível pela pesquisa online, pelo pedido de
leitura online. Que os bibliotecários não adoptem uma solução de
emergência como a solução óptima, suprema ilusão. O futuro não pode
negar a condição humana inerente na leitura, na consulta, na ida à
biblioteca. Umberto Eco descreveu com mestria esta proximidade com o
livro, fosse recordando as bibliotecas americanas ou as da sua Itália.
Vaguear entre estantes carregadas de livros em papel, perceber que este
livro agora nas mãos tem uma afinidade inegável com aqueloutro que
folheámos há momentos atrás, largá-lo para o repegar um pouco mais
tarde, faz todo o sentido. Verdadeiramente “fazer da biblioteca uma
aventura”, celebrar o objecto tridimensional no espaço concreto e real
da biblioteca, entre pessoas, sempre mais pessoas. A forma mais bonita
de celebrar os quase 600 anos do livro impresso.
* Bibliotecária aposentada
IN "ESQUERDA"
24/04/20
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