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HOJE NA
"VISÃO"
Qual a diferença entre estado de emergência e estado de calamidade?
Um constitucionalista explica à VISÃO em que diferem estes estados de exceção e se há restrições que não vão poder manter-se quando sairmos do estado de emergência
Com o terceiro estado de emergência à beira do fim do prazo, são cada vez mais as previsões de que o Governo se prepara para aliviar as medidas de restrição e implementar um estado de calamidade. Mas afinal, que estado é esse? E que tipo de condicionamentos esse estado permite?
O estado de emergência que passou a vigorar em Portugal a partir de 18 de março,
por determinação do presidente da República, “é uma figura
jurídico-constitucional que está prevista como medida extrema de
limitação dos direitos e liberdades”, explica à VISÃO o
constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos. Previsto na
Constituição, estava pensado para outro tipo de situações que não um
vírus, como uma “agressão por parte de uma potência externa, um limiar
de guerra civil ou um grande caos social ou político”, acrescenta o
especialista.
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A CALAMIDADE DAS RUAS DESERTAS |
Já o estado de calamidade está previsto na Lei de Bases da Proteção
Civil, criada em 2006 e por várias vezes revista, e pode ser aplicado
quando, perante uma catástrofe ou acidente grave de “previsível
intensidade”, o país se vê perante a necessidade “de adotar medidas de
caráter excecional destinadas a prevenir, reagir ou repor a normalidade
das condições de vida”. Pode servir o país inteiro ou circunscrever-se a
uma zona mais limitada do território, como aconteceu em Ovar, a 17 de
março, quando foi imposta uma espécie de quarentena geográfica (salvo
raras exceções ninguém entrava nem saía) devido a três dezenas de casos
positivos de infeção por Covid-19 e devido ao facto de o surto se ter
então espalhado pela comunidade.
Neste caso, ao contrário do estado de emergência, uma situação de
calamidade não depende de um decreto do Presidente da República; a
declaração do estado de calamidade é da competência do governo e é
aplicado através de uma resolução do Conselho de Ministros – portanto
segue os trâmites normais do processo legislativo.
Nessa resolução deverão ser dadas instruções específicas “aos agentes
de proteção civil e às entidades e instituições envolvidas nas
operações de proteção e socorro”; deverão ser enumerados quais os
critérios para conseguir “apoios materiais e financeiros”, fixados os
limites ou condicionamentos “à circulação ou permanência de pessoas”, ao
mesmo tempo que deve ser criada legislação “especial” relativa a
“prestações sociais, incentivos à atividade económica e financiamento
das autarquias locais”.
Tal como acontece no estado de emergência que está atualmente em
vigor, também neste caso quem desobedecer ou resistir às ordens das
autoridades será punido pelo crime de desobediência, com as molduras
penais a serem agravadas em um terço – em casos mais graves, a pena pode
ser de prisão e ir até 1 ano e 4 meses.
E assim sendo, as medidas que podemos ter daqui para a frente serão
muito diferentes só porque se irá passar para um estado de calamidade?
Nem por isso. Tanto que o constitucionalista Pedro Bacelar de
Vasconcelos tem sérias dúvidas sobre se teria sido mesmo necessário
decretar estado de emergência. “Não é evidente para mim. O tipo de
medidas requeridas podiam ter sido adaptadas do quadro da lei de bases
da proteção civil.” Até porque, recorda, quando o primeiro estado de
emergência entrou em vigor “já tinham sido adotadas medidas no quadro da
lei de bases da proteção civil” que impunham restrições de liberdades e
que “só foram sendo explicitadas nas semanas seguintes com o curso da
pandemia”.
Ainda assim, o constitucionalista espera que o governo de António Costa
aproveite esta transição para corrigir o que considera ter sido “um
abuso” durante o estado de emergência e que promoveu “uma visível
discriminação dos idosos”. Se é verdade que os maiores de 70 anos são
mais vulneráveis ao vírus, verdade também é que não tendo eles de se
confinar para protegerem os outros – mas sobretudo para se protegerem a
si próprios -, “devem ser os últimos a decidir sobre a saúde deles
mesmos”: “Parece-me extremamente preocupante que alguém com mais de 70
anos, em perfeitas condições de saúde, e que queira desempenhar tarefas
para as quais se sente habilitado e capaz, não o possa fazer devido a
uma norma que assenta na sua própria proteção. É um pouco paradoxal.
Ninguém melhor que o próprio para saber como melhor se proteger, e o que
deve ser feito para defesa sua da vida e da sua saúde. Acho abusivo,
excesso de paternalismo, e não creio sequer que um estado de emergência
justificasse isso.”
No campo do que deveria ser possível mudar, Bacelar de Vasconcelos
critica ainda a forma como foi tratado o direito de resistência no
decreto do estado de emergência. Neste caso, o que se diz é que é
proibido qualquer ato de desobediência e de resistência às ordens das
autoridades, quando o direito de resistência, alerta o
constitucionalista, “é um direito último de salvaguarda da liberdade
numa democracia”. “Que uma autoridade policial possa agir por razões de
saúde pública, porque alguém furou a quarentena obrigatória, por
exemplo, é uma coisa. Outra é uma entidade policial fazer exigências
desproporcionadas, como obrigar alguém a despir-se ou a fazer algo
desajustado na rua, aí o direito de resistência tem de continuar a
existir”, diz o constitucionalista, deputado socialista e professor
universitário, para quem o direito de resistência não pode ser
simplesmente abolido, mesmo perante um Estado em que os cidadãos estão
com os seus direitos limitados.
Agora, claro está, como a Lei de Bases não foi propriamente desenhada a
pensar num vírus que se iria transformar numa pandemia, o mais provável é
que “venham a ser feitos melhoramentos ao próprio quadro legislativo”,
diz o especialista em Direito Constitucional, que vê como pontos
positivos o facto de terem sido respeitados os “princípios da
proporcionalidade e da adequação” mediante “a impreparação que tínhamos
face a uma ameaça destas, face a uma estrutura administrativa das mais
centralizadas da Europa, e face à ausência de instituições intermédias”,
entre o poder central e o poder local, que “levou presidentes de câmara
e presidentes de junta a sentirem-se legitimados a apresentar
reclamações”. Ausência, aliás, que “já tinha sido visível no combate aos
incêndios, com o governo a ter de se desdobrar em funções que eram dos
velhos governadores civis”.
* Desejamos que o estado de injustiça não continue.
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