28/04/2020

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HOJE NA
"VISÃO"
Qual a diferença entre estado de emergência e estado de calamidade?

Um constitucionalista explica à VISÃO em que diferem estes estados de exceção e se há restrições que não vão poder manter-se quando sairmos do estado de emergência

Com o terceiro estado de emergência à beira do fim do prazo, são cada vez mais as previsões de que o Governo se prepara para aliviar as medidas de restrição e implementar um estado de calamidade. Mas afinal, que estado é esse? E que tipo de condicionamentos esse estado permite?

O estado de emergência que passou a vigorar em Portugal a partir de 18 de março, por determinação do presidente da República, “é uma figura jurídico-constitucional que está prevista como medida extrema de limitação dos direitos e liberdades”, explica à VISÃO o constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos. Previsto na Constituição, estava pensado para outro tipo de situações que não um vírus, como uma “agressão por parte de uma potência externa, um limiar de guerra civil ou um grande caos social ou político”, acrescenta o especialista.
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A CALAMIDADE DAS RUAS DESERTAS
Já o estado de calamidade está previsto na Lei de Bases da Proteção Civil, criada em 2006 e por várias vezes revista, e pode ser aplicado quando, perante uma catástrofe ou acidente grave de “previsível intensidade”, o país se vê perante a necessidade “de adotar medidas de caráter excecional destinadas a prevenir, reagir ou repor a normalidade das condições de vida”. Pode servir o país inteiro ou circunscrever-se a uma zona mais limitada do território, como aconteceu em Ovar, a 17 de março, quando foi imposta uma espécie de quarentena geográfica (salvo raras exceções ninguém entrava nem saía) devido a três dezenas de casos positivos de infeção por Covid-19 e devido ao facto de o surto se ter então espalhado pela comunidade.

Neste caso, ao contrário do estado de emergência, uma situação de calamidade não depende de um decreto do Presidente da República; a declaração do estado de calamidade é da competência do governo e é aplicado através de uma resolução do Conselho de Ministros – portanto segue os trâmites normais do processo legislativo.

Nessa resolução deverão ser dadas instruções específicas “aos agentes de proteção civil e às entidades e instituições envolvidas nas operações de proteção e socorro”; deverão ser enumerados quais os critérios para conseguir “apoios materiais e financeiros”, fixados os limites ou condicionamentos “à circulação ou permanência de pessoas”, ao mesmo tempo que deve ser criada legislação “especial” relativa a “prestações sociais, incentivos à atividade económica e financiamento das autarquias locais”.

Tal como acontece no estado de emergência que está atualmente em vigor, também neste caso quem desobedecer ou resistir às ordens das autoridades será punido pelo crime de desobediência, com as molduras penais a serem agravadas em um terço – em casos mais graves, a pena pode ser de prisão e ir até 1 ano e 4 meses.

E assim sendo, as medidas que podemos ter daqui para a frente serão muito diferentes só porque se irá passar para um estado de calamidade? Nem por isso. Tanto que o constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos tem sérias dúvidas sobre se teria sido mesmo necessário decretar estado de emergência. “Não é evidente para mim. O tipo de medidas requeridas podiam ter sido adaptadas do quadro da lei de bases da proteção civil.” Até porque, recorda, quando o primeiro estado de emergência entrou em vigor “já tinham sido adotadas medidas no quadro da lei de bases da proteção civil” que impunham restrições de liberdades e que “só foram sendo explicitadas nas semanas seguintes com o curso da pandemia”.

Ainda assim, o constitucionalista espera que o governo de António Costa aproveite esta transição para corrigir o que considera ter sido “um abuso” durante o estado de emergência e que promoveu “uma visível discriminação dos idosos”. Se é verdade que os maiores de 70 anos são mais vulneráveis ao vírus, verdade também é que não tendo eles de se confinar para protegerem os outros – mas sobretudo para se protegerem a si próprios -, “devem ser os últimos a decidir sobre a saúde deles mesmos”: “Parece-me extremamente preocupante que alguém com mais de 70 anos, em perfeitas condições de saúde, e que queira desempenhar tarefas para as quais se sente habilitado e capaz, não o possa fazer devido a uma norma que assenta na sua própria proteção. É um pouco paradoxal. Ninguém melhor que o próprio para saber como melhor se proteger, e o que deve ser feito para defesa sua da vida e da sua saúde. Acho abusivo, excesso de paternalismo, e não creio sequer que um estado de emergência justificasse isso.”

No campo do que deveria ser possível mudar, Bacelar de Vasconcelos critica ainda a forma como foi tratado o direito de resistência no decreto do estado de emergência. Neste caso, o que se diz é que é proibido qualquer ato de desobediência e de resistência às ordens das autoridades, quando o direito de resistência, alerta o constitucionalista, “é um direito último de salvaguarda da liberdade numa democracia”. “Que uma autoridade policial possa agir por razões de saúde pública, porque alguém furou a quarentena obrigatória, por exemplo, é uma coisa. Outra é uma entidade policial fazer exigências desproporcionadas, como obrigar alguém a despir-se ou a fazer algo desajustado na rua, aí o direito de resistência tem de continuar a existir”, diz o constitucionalista, deputado socialista e professor universitário, para quem o direito de resistência não pode ser simplesmente abolido, mesmo perante um Estado em que os cidadãos estão com os seus direitos limitados.

Agora, claro está, como a Lei de Bases não foi propriamente desenhada a pensar num vírus que se iria transformar numa pandemia, o mais provável é que “venham a ser feitos melhoramentos ao próprio quadro legislativo”, diz o especialista em Direito Constitucional, que vê como pontos positivos o facto de terem sido respeitados os “princípios da proporcionalidade e da adequação” mediante “a impreparação que tínhamos face a uma ameaça destas, face a uma estrutura administrativa das mais centralizadas da Europa, e face à ausência de instituições intermédias”, entre o poder central e o poder local, que “levou presidentes de câmara e presidentes de junta a sentirem-se legitimados a apresentar reclamações”. Ausência, aliás, que “já tinha sido visível no combate aos incêndios, com o governo a ter de se desdobrar em funções que eram dos velhos governadores civis”.

* Desejamos que o estado de injustiça não continue.

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