05/12/2019

RUI TAVARES GUEDES

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 O Interior não precisa
 da “descentralização”

Mais do que golpes de afeto ou de emoção, o Interior precisa que lhe falem verdade

A desertificação do Interior é um dos problemas mais graves que Portugal enfrenta, atualmente, devido às consequências que pode ter para a coesão nacional e para o desenvolvimento económico. E é também, sem qualquer margem de dúvida, um dos de mais difícil resolução e um dos que, para ser bem-sucedido, exigirão sempre um esforço constante e prolongado ao longo de muitos anos. Grande parte da sua dificuldade reside no facto de este ser um problema que se interliga com outros dois dos maiores combates que o País terá também de enfrentar nas próximas décadas: a quebra de natalidade e a emergência climática. De uma forma ou de outra, os três desafios cruzam-se uns com os outros e terão de ser enfrentados em conjunto. Não há, por isso, soluções imediatas nem milagrosas para qualquer um deles, mesmo que venham acompanhadas pelas declarações mais eloquentes ou, sobretudo, por planos puramente teóricos sem qualquer relação com a realidade local.

Esta é uma verdade que tem de ser assumida, com clareza, pelos poderes públicos – sem receio de sublinhar que tudo o que possa ser feito levará anos a concretizar-se e com a obrigação de avisar que será impossível inverter, com rapidez, um movimento migratório lento de décadas. Até porque a situação agravou-se, nos últimos anos – curiosamente, quando o Interior até ficou mais “próximo” do Litoral, graças à rede de autoestradas construídas um pouco por todo o lado, com o objetivo de reduzir distâncias e de impedir o isolamento a que muitas populações estavam votadas.

A verdade é que, como se viu, em vez de aproximarem, as autoestradas acabaram por separar o País entre o Litoral e o Interior. Por uma razão simples: tornou-se muito mais rápido e sair das povoações com fracas infraestruturas, com populações cada vez mais envelhecidas, de onde praticamente desapareceram os serviços básicos e a esperança de qualquer futuro para os mais jovens. Hoje temos, por isso, um País dividido não por acidentes geográficos, mas por perspetivas de oportunidade de vida. Temos uma divisão clara entre o País habitado e o País desertificado. Um que se estende ao longo do Litoral, por vezes já sob forte pressão demográfica e onde é cada vez mais difícil encontrar habitação ou sequer salários dignos, e outro que, apesar dos esforços de muitos notáveis e esforçados resistentes no Interior, vai ficando deserto, repleto de casas vazias, edifícios históricos ou tradicionais a degradarem-se e uma sensação evidente de desalento e de abandono.

É justo reconhecer que o Programa de Governo agora apresentado tem vários parágrafos dedicados ao tema e até um capítulo sobre a Coesão Territorial. Na estrutura do Executivo também se mantém uma Secretaria de Estado da Valorização do Interior, uma das três (juntamente com a da Conservação da Natureza, Florestas e Ordenamento do Território, e a da Ação Social) que vão ficar instaladas fora de Lisboa, numa ação chamada “descentralização” e destinada a promover o Interior. Ora, embora se perceba a tentação de se optar por essa manobra, capaz de gerar ondas de simpatia nos locais onde vão ficar instalados os governantes, também se torna muito difícil conseguir perceber qual será o verdadeiro efeito prático que se pode obter com ela.

Por coincidência, passei a última semana a percorrer, em ritmo lento, os distritos de Castelo Branco, Guarda e Bragança, precisamente aqueles onde vão ser instaladas as secretarias de Estado. 

Reconheço a minha “cegueira”, mas não consegui vislumbrar nada em que essa medida de “descentralização” possa beneficiar, na prática, o Interior e contribuir para combater a desertificação. 

Aceito que possa existir um efeito emocional, em especial quando uma cientista prestigiada como Isabel Ferreira declara que vai continuar a trabalhar em Bragança, onde sempre desenvolveu a sua atividade científica, no respetivo Politécnico. Mas mais do que golpes de afeto ou de emoção, o Interior precisa que lhe falem verdade. Precisa de medidas estruturais no País e de muitas pequenas intervenções, coordenadas, com quem ainda lá vive (e tantos bons exemplos que há ainda!).

Precisa, acima de tudo, que não se perca tempo no acessório e que se foquem os esforços, isso sim, no essencial. Se é que ainda vamos a tempo…

* Director executivo

IN "VISÃO"
28/11/19

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