18/11/2019

JÚLIA CARÉ

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Caderno de encargos

Lixo humano? Ninguém merece ter a rua ou o contentor do lixo, como local de entrada neste mundo.

1. Rendimentos. Mesmo sem as explicações do Presidente da Cáritas Portuguesa sobre os índices de pobreza do nosso país, a rondar os 20%, sabe-se que neles se incluem naturalmente os números do desemprego desprotegido, os pensionistas e reformados com pensões mínimas, os cidadãos beneficiários de apoios da Segurança Social, que no seu conjunto, interpelam a retórica do crescimento económico que tanto se apregoa. Mas diz ainda Eugénio Fonseca, que numa leitura mais fina da população portuguesa em risco de pobreza, este número excede em muito a soma dos cidadãos desempregados e beneficiários dos diversos esquemas de proteção social, podendo concluir-se que nele se incluem muitos trabalhadores com emprego, mas de baixo salário, em regra o generalizado salário mínimo que não chega para uma sobrevivência digna. Convinha adicionar esta reflexão a uma informação recente acerca da posição de Portugal, o terceiro país da Europa com elevadas quantias em paraísos fiscais, dinheiro que não foi tributado, que não cumpriu o direito moral de cidadania, de contribuir para o bem comum, através da justa redistribuição da riqueza. Talvez até de algum empresariado, dos que alegam não poder pagar mais do que o salário mínimo, porque os seus lucros não chegam para mais...

Por outro lado, foi interessante ouvir o primeiro ministro referir-se ao quanto o seu salário se tinha desvalorizado nos últimos tempos devido à crise. É bom que o reconheça e seja consequente. É que o mesmo aconteceu a muitos trabalhadores, reformados e pensionistas deste país. E no que toca ao estafado estribilho da devolução dos rendimentos cortados pelo tempo da troika, é bom que se lembre que antes de 2011, no último governo Sócrates houve um significativo corte em muitos salários, rendimentos que ainda não foram repostos. Eles escondem-se por detrás de índices de crescimento económico, de folgas orçamentais e afins.

2. Estamos em Emergência Climática. Para aquietar naturais ansiedades, as estruturas políticas apropriam-se até da questão climática para a designação de organismos governamentais. Seria bom, todavia, que levantássemos o olhar e o ego de sonantes designações atávicas e olhássemos para as localidades esventradas de pedras preciosas das insulares ribeiras e orlas costeiras, e para as interioridades remotas deixadas ao abandono dos fogos e do despovoamento, ou alvo da cobiça dos predadores de sempre dos recursos naturais, alcandorados nos desígnios meritórios da descarbonização e das energias limpas. Esperemos que se consiga trazer a consciência do cidadão comum para a necessidade de se envolver, desde a gestão da água num país com zonas em seca severa, mas acima de tudo para o exercício de uma maior vigilância e intervenção crítica ativa, em nome de uma maior cidadania ambiental...

3. Lixo humano? Ninguém merece ter a rua ou o contentor do lixo, como local de entrada neste mundo. Mas eles acontecem para nosso incómodo e vergonha moral. Quem somos nós para julgar aquela jovem mãe sem-abrigo que colocou o seu bebé no contentor do lixo? Podemos tentar imaginar a angústia, o desespero, a solidão, o abandono, a indiferença, a insensibilidade e irresponsabilidade de tantos, esses sim, criminosos. Devíamos sentir remorsos. Ela inclui-se no número dos 20% da nossa sociedade, os pobres dos mais pobres, cujo saldo entre deve e haver não irá além do teto de cartão, ou da tenda na selva de betão gentrificado das grandes urbes, pavimentadas cada vez mais de indiferença, insensibilidade e invisibilidade social e política, ostensivamente colocados fora da equação entre austeridade, prosperidade, crescimento económico, folgas orçamentais, que nos dão orgulhosos orçamentos zero para colocar no altar das instituições europeias. Devíamos ainda revoltar-nos contra uma sociedade que como sempre, é lesta a apontar o dedo à mulher, a alegada “criminosa”; e o elemento masculino da progenitura? Ele não é igualmente responsável?

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
13/11/19

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