.
A ministra e
as obras de misericórdia
Nada
teria a opor se a visita fosse feita pela cidadã Francisca Van Dunem. Só
que a visita foi feita na qualidade de membro do Governo. A titular de
uma pasta que tem nas suas mãos a condução do processo.
A
visita que a ministra da Justiça fez à jovem mãe, que abandonou o filho
recém-nascido num caixote do lixo e que se encontra em prisão
preventiva, tem sido objeto das mais variadas leituras.
Assim, não
faltou quem criticasse Francisca Van Dunem acusando-a de, com essa
visita, estar a desrespeitar o poder judicial, uma vez que o ato pode
ser visto como uma forma de solidariedade com alguém que está acusada de
um crime que toda a sociedade portuguesa repudia. Com a agravante de as
imagens gravadas não permitirem dúvidas sobre a circunstância de a
presunção de inocência ser, neste caso, um mero formalismo jurídico.
Em
sentido oposto, ouviram-se murmúrios, mais do que vozes, favoráveis à
decisão da ministra. Lembraram que só alguém em situação de total
desespero pode ver-se obrigada a cometer um ato tão hediondo. Uma prova
de que a opinião pública tanto coloca a tónica na acusação sem
julgamento como se deixa levar por uma compaixão quase doentia.
Como
é óbvio e apesar do articulado da Constituição proibir que a cor da
pele seja usada como fator de discriminação, negativa ou positiva,
também não faltou quem ligasse a visita ao facto de a detida e a
ministra terem o mesmo tom de pele, esquecendo que, se esse fosse o
critério, Francisca Van Dunem teria muitas prisioneiras para visitar.
Como
católico sei que visitar os presos corresponde à sexta obra de
misericórdia temporal. Uma lista feita por Jesus Cristo no Juízo Final,
que começa em dar de comer a quem tem fome e termina em enterrar os
mortos. Por isso, nada teria a opor se a visita fosse feita pela cidadã
Francisca Van Dunem.
Tal como não manifestaria o mínimo incómodo – bem
pelo contrário – se Francisca tivesse ido visitar os enfermos que neste
país se veem quotidianamente abandonados em camas de hospitais. Um ato
que considero como uma espécie de câmara de uma eutanásia por
negligência e abandono familiar.
Só que a visita foi feita na
qualidade de membro do Governo. A titular de uma pasta que tem nas suas
mãos a condução do processo. Não se trata de uma ministra com a tutela
da área que, se devidamente operacional, teria diminuído grandemente o
risco ou a possibilidade de o crime ter acontecido.
No final da
visita, a ministra manifestou a sua satisfação pelo facto de a detida
estar a receber apoio psicológico. Do ponto de vista humano trata-se de
uma atitude compreensível e louvável. Só que a satisfação transforma-se
em preocupação pelo facto de se estar a fazer a posteriori aquele que
deveria ser o procedimento habitual a priori.
Voltando às obras de
misericórdia, não é à ministra da Justiça que cumpre dar de beber a
quem tem sede, vestir os nus e dar pousada aos peregrinos. Uma lista que
se mantém atual, embora com a substituição da figura do peregrino pela
do sem-abrigo. A condição que marcava a vida da jovem detida.
Porém,
talvez convenha pensar que a ministra é apenas um dos membros do órgão
colegial que dá pelo nome de Governo. É a este, qualquer que seja a sua
composição, que compete criar condições para que uma mãe se recuse ou se
veja obrigada a negar a maternidade. Até porque, como os portugueses
estão a descobrir nos casos das crianças açorianas “adotadas” por
militares norte-americanos, numa altura em que a figura da adoção não
existia em Portugal, a miséria é mais profunda do que a pobreza.
* Professor catedrático
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
22/11/19
.
Sem comentários:
Enviar um comentário