25/11/2019

JOSÉ FILIPE PINTO

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A ministra e 
as obras de misericórdia

Nada teria a opor se a visita fosse feita pela cidadã Francisca Van Dunem. Só que a visita foi feita na qualidade de membro do Governo. A titular de uma pasta que tem nas suas mãos a condução do processo.

A visita que a ministra da Justiça fez à jovem mãe, que abandonou o filho recém-nascido num caixote do lixo e que se encontra em prisão preventiva, tem sido objeto das mais variadas leituras.

Assim, não faltou quem criticasse Francisca Van Dunem acusando-a de, com essa visita, estar a desrespeitar o poder judicial, uma vez que o ato pode ser visto como uma forma de solidariedade com alguém que está acusada de um crime que toda a sociedade portuguesa repudia. Com a agravante de as imagens gravadas não permitirem dúvidas sobre a circunstância de a presunção de inocência ser, neste caso, um mero formalismo jurídico.

Em sentido oposto, ouviram-se murmúrios, mais do que vozes, favoráveis à decisão da ministra. Lembraram que só alguém em situação de total desespero pode ver-se obrigada a cometer um ato tão hediondo. Uma prova de que a opinião pública tanto coloca a tónica na acusação sem julgamento como se deixa levar por uma compaixão quase doentia.

Como é óbvio e apesar do articulado da Constituição proibir que a cor da pele seja usada como fator de discriminação, negativa ou positiva, também não faltou quem ligasse a visita ao facto de a detida e a ministra terem o mesmo tom de pele, esquecendo que, se esse fosse o critério, Francisca Van Dunem teria muitas prisioneiras para visitar.

Como católico sei que visitar os presos corresponde à sexta obra de misericórdia temporal. Uma lista feita por Jesus Cristo no Juízo Final, que começa em dar de comer a quem tem fome e termina em enterrar os mortos. Por isso, nada teria a opor se a visita fosse feita pela cidadã Francisca Van Dunem.

Tal como não manifestaria o mínimo incómodo – bem pelo contrário – se Francisca tivesse ido visitar os enfermos que neste país se veem quotidianamente abandonados em camas de hospitais. Um ato que considero como uma espécie de câmara de uma eutanásia por negligência e abandono familiar.

Só que a visita foi feita na qualidade de membro do Governo. A titular de uma pasta que tem nas suas mãos a condução do processo. Não se trata de uma ministra com a tutela da área que, se devidamente operacional, teria diminuído grandemente o risco ou a possibilidade de o crime ter acontecido.

No final da visita, a ministra manifestou a sua satisfação pelo facto de a detida estar a receber apoio psicológico. Do ponto de vista humano trata-se de uma atitude compreensível e louvável. Só que a satisfação transforma-se em preocupação pelo facto de se estar a fazer a posteriori aquele que deveria ser o procedimento habitual a priori.

Voltando às obras de misericórdia, não é à ministra da Justiça que cumpre dar de beber a quem tem sede, vestir os nus e dar pousada aos peregrinos. Uma lista que se mantém atual, embora com a substituição da figura do peregrino pela do sem-abrigo. A condição que marcava a vida da jovem detida.

Porém, talvez convenha pensar que a ministra é apenas um dos membros do órgão colegial que dá pelo nome de Governo. É a este, qualquer que seja a sua composição, que compete criar condições para que uma mãe se recuse ou se veja obrigada a negar a maternidade. Até porque, como os portugueses estão a descobrir nos casos das crianças açorianas “adotadas” por militares norte-americanos, numa altura em que a figura da adoção não existia em Portugal, a miséria é mais profunda do que a pobreza.

* Professor catedrático

IN "O JORNAL ECONÓMICO"
22/11/19

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