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* Jornalista
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
23/11/19
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Da fragilidade da democracia
O inquérito de impeachment de Trump demonstra que mesmo numa democracia consolidada e aparentemente robusta é possível transformar o governo numa associação mafiosa - e manter o apoio entusiástico de uma parte considerável das pessoas. Consideremo-nos avisados.
Não é decerto a primeira vez que vemos corrupção, jogos sujos e crimes
de toda a espécie em governos eleitos democraticamente. Isto, claro,
apenas do que sabemos. E se nos ativermos só aos EUA não faltam
exemplos, do óbvio caso de Nixon, que teve um processo de destituição
(acabou por renunciar) por se provar ter conhecimento da espionagem
política aos democratas consubstanciada na invasão dos escritórios
daqueles no edifício Watergate, ao escândalo Irão-Contras, na
administração Reagan - a venda de armas clandestina ao Irão, então
sujeito a embargo decretado pelos EUA, e a utilização dos proventos
dessa venda no financiamento da guerrilha contra o governo sandinista da
Nicarágua (os "contras"), financiamento esse proibido pelo Congresso.
Temos pois amplos precedentes de ilegalidades e perversões dos
mandatos constitucionais cometidos ao mais alto nível. O que parece novo
- e pode ser, claro, que só pareça novo por se estar a passar agora - é
o nível de desbragamento na exibição do desprezo pelos processos legais
e constitucionais e pela aparência de ética mínima que caracteriza
Trump.
Tudo o que o presidente americano fez desde que tomou
posse, da nomeação de membros da sua família para cargos oficiais à
proposta de que um hotel seu fosse escolhido para receber um encontro
internacional organizado pelos EUA, passando pela forma como vilipendia
pessoas que fizeram ou fazem parte da sua administração (já nem falemos
de como se refere àqueles que considera seus adversários), evidencia uma
total indiferença, senão mesmo desconhecimento, pelos mínimos de
gravitas e de afetação de seriedade que se exigem no cargo que ocupa.
É como se Trump tivesse decidido desfazer e corromper, pela
sua ação e discurso, tudo o que é o adquirido sobre o papel de um
governante; como se tivesse ido para a Casa Branca como concorrente
daqueles reality shows em que de resto foi produtor e
apresentador, o tipo de concorrente que afirma "vou ser eu próprio", e
se guia única e exclusivamente por aquilo que lhe dá na bolha e por
critérios de popularidade junto do seu público. O público que
ele, não esqueçamos, garantiu ainda antes de ser eleito que o apoiaria
mesmo caso ele matasse alguém numa das artérias mais movimentadas de
Nova Iorque, a 5.ª Avenida. O público que, intui ele e é capaz de não
estar enganado, gosta de o ver portar-se como um labrego.
O que o
inquérito nos traz de novo, e de que já suspeitávamos, é a evidência de
como aquilo e aqueles a que se costuma dar o nome desagradável de
"sistema" - os chamados "burocratas" e "homens sem rosto" que fazem
parte dos governos e das administrações, e incluem membros das Forças
Armadas, Serviços Secretos, etc. -, de quem geralmente esperamos os mais
elaborados e sinistros esquemas de bloqueio, maquinação e conspiração
(vide os casos mencionados, nomeadamente o Irão-Contras), podem ser a
última linha de resistência da democracia e do Estado de direito ante as
ações ilegítimas de um governante eleito.
Pessoas como Fiona Hill
e Alexander Vindman, assessores de política externa e segurança
nacional dos quais normalmente nunca conheceríamos a existência e que
encararíamos, à partida, como yes women e men mas que
fizeram os possíveis para combater aquilo que lhes surgiu como
impropriedade e corrupção dos poderes presidenciais e tiveram a coragem
de, agora, o denunciar ante o país. E mesmo alguém como o ex-conselheiro
de Segurança Nacional John Bolton, considerado um radical de direita
mas que informado do esquema para trocar apoio dos EUA à Ucrânia por
ataque a um adversário político do presidente o terá, de acordo com o
relato de Hill, qualificado como "negócio de droga" (ou seja tráfico e
ilegalidade), fazendo questão de se demarcar de imediato e mandando
informar o conselheiro legal do Conselho Nacional de Segurança do que se
estava a passar.
Pode ser, claro, que algumas destas ações não se devam a imperativos
éticos mas a disputas de poder, e portanto não mereçam qualquer louvor -
de resto, nenhuma destas pessoas, que se saiba, reportou o caso "para
fora" até ser chamada a testemunhar. Mas, precisamente, o que
ressalta disto que vamos sabendo é que apesar de todas as estruturas
formais existentes num país como os EUA para, em teoria, evitar o
sequestro do poder para benefício ilegítimo de quem o ocupa, a
resistência passa por indivíduos - como o whistle blower que
efetuou a denúncia e outros funcionários que terão tentado obstaculizar o
que se estava a passar e vêm agora confirmar o que ele denunciou.
Teremos
pois de concluir que aquilo a que damos o nome de "regular
funcionamento das instituições" depende em grande parte do bom senso e
sentido de decoro de quem ocupa lugares de decisão democraticamente
preenchidos. E que é assim possível, mesmo em sistemas de checks and balances,
ou seja, nos quais o poder está distribuído por várias instituições e
existem várias instâncias de validação e fiscalização, como é o caso das
democracias e Estados de direito consolidados, um "rei louco"
transformar o governo numa associação mafiosa perante a impotência de
uns e o aplauso e/ou cumplicidade de outros.
Pode assim Trump mandatar no seu advogado pessoal, Rudolph Giuliani,
que não tem qualquer cargo formal na administração, o poder de dar
ordens a embaixadores e desenvolver contactos e "negócios" que afetam a
política externa americana e a segurança nacional, criando desta forma
canais paralelos e sem qualquer controlo, sem rasto de "papelada" ou de
necessidade de consulta dos organismos criados para esse efeito. É a
autocracia no seu esplendor, com o que implica de absoluta corrupção da
democracia.
E - essa é uma das lições fundamentais do que estamos a
ver - isto pode suceder sem que, aparentemente, a parte dos americanos
que apoia Trump, incluindo a maioria do Partido Republicano (e portanto
uma porção considerável do sistema democrático), considere que se está a
passar algo de errado. O mandato conferido por via democrática
pode assim transformar-se num processo - exposto, exibido e
televisionado - de destruição da democracia.
Porque,
estamos a descobrir, para muita gente democracia será a existência de
eleições, onde se esgota a produção de legitimidade. Legitimado por
eleições e pelo voto do povo, um governante poderá, nessa perspetiva,
desprezar os formalismos do sistema democrático, as suas regras
constitucionais e legais, como um juiz que uma vez na direção do
tribunal aplicasse uma lei própria, mandando os códigos fora. Pode dizer
"a lei sou eu, o poder sou eu, a verdade sou eu que decido o que é e
estou-me nas tintas para o que os burocratas dizem".
Trump é
apenas o sinal mais exposto, porque apesar de tudo mais sindicado, desse
vírus que nos habituámos a dar por normal nas democracias "incipientes"
da América Latina e de África e que, inopinadamente, está a tomar de
assalto o Ocidente: o caudilhismo.
* Jornalista
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
23/11/19
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