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Não só podemos, como devemos
Resposta ao manifesto racista
de Maria de Fátima Bonifácio
As quotas étnico-raciais não são um fim em si mesmo e a
introdução das mesmas não equivale a premiar ‘incapazes e preguiçosos’
ou colocar pessoas em lugares de topo apenas por causa da cor da pele.
Preparava-me eu para escrever um artigo sobre a necessidade de introduzir quotas étnico-raciais, quando me deparei com um manifesto racista de Maria de Fátima Bonifácio,
publicado no jornal Público, com o título ‘Podemos? Não, não podemos’.
Neste artigo, a autora explica porque é que a questão da
representatividade étnico-racial é tão diferente da paridade de género.
Segundo Fátima Bonifácio, contrariamente às mulheres, os
afrodescendentes, ciganos e outros não descendem da mesma ‘entidade
civilizacional e cultural milenária’ e, logo, nunca se assimilarão ou
integrarão na nossa cultura uma vez que ‘mantêm crenças, cultos e
liturgias próprias’ incompatíveis com as da sociedade dominante.
A autora dá a entender que introduzir quotas ou medidas de ação
afirmativa se resume a escolher aleatoriamente uma pessoa ou
‘analfabeto’ de um qualquer bairro periférico e depositá-lo
instantaneamente numa universidade ou numa empresa esperando que
ele/ela, por milagre, se integre.
É, segundo a própria, criar um passe
de livre-trânsito entre o secundário e a universidade, sem impor
qualquer tipo de condições, e premiar a cultura do ‘facilitismo’. Fátima
Bonifácio dá, pois, a entender que os proponentes das quotas têm como
único critério a cor da pele. Depois retira a conclusão que teremos um
Parlamento ainda mais ignorante e incompetente do que o que já temos e
universidades repletas de incapazes e preguiçosos – leia-se – quando as
minorias ‘exóticas’ invadirem as nossas instituições. Por outras
palavras, as minorias ‘exóticas’ são todas bárbaras, racistas,
incapazes, preguiçosas, pouco civilizadas e, portanto, ninguém teria
nada a ganhar com o seu contributo para a sociedade.
O que Fátima
Bonifácio escreve é grave por vários motivos, mas sobretudo pela forma
como utiliza, sem qualquer pudor, estereótipos e preconceitos racistas
para rotular comunidades inteiras e pela forma como parece querer
remetê-los à sua condição porque ‘eles são mesmo assim’ e nunca se
emanciparão. Mas, infelizmente, o texto da autora reflete um tipo de
pensamento que efetivamente existe, de forma mais subtil e dissimulada,
em muitos sectores na sociedade portuguesa.
Quando questionamos
sobre a falta de representatividade de afrodescendentes no espaço
público, a resposta é invariavelmente a mesma: não há representatividade
porque não existem afrodescendentes, ciganos ou outros com as
qualificações e competências necessárias para formar quadros. ‘Mas onde é
que eles estão’ questionam muitos. É precisamente esta ideia
distanciada da realidade do ‘nós vs eles’ – de que os negros e
afrodescendentes estão todos concentrados em bairros e guetos
periféricos envolvidos em rivalidades e conflitos tribais – que alimenta
este preconceito e estigmatização.
Esta conclusão não só não
corresponde à realidade, como apazigua a nossa consciência colectiva,
travando qualquer possibilidade de debate e desresponsabilizando-nos da
tarefa de procurar soluções. É mais fácil concluir que o problema está
nos outros do que em nós.
Quer isto dizer que o ónus da
responsabilidade da integração reside exclusivamente na dita ‘sociedade e
cultura dominante’? Claro que não. Todas as pessoas e comunidades têm
direitos e deveres e há, com certeza, muitos problemas, conflitos,
diferenças culturais que urge resolver e combater.
Mas isso não nos demite da nossa responsabilidade de corrigir desigualdades crónicas e estruturais.
As
quotas étnico-raciais não são um fim em si mesmo e a introdução das
mesmas não equivale a premiar ‘incapazes e preguiçosos’ ou colocar
pessoas, sem qualquer preparação, em lugares de topo apenas por causa da
cor da pele.
Não se trata de integrar por decreto. Trata-se de
oferecer igualdade de oportunidades a pessoas cujo ponto de partida é,
por força das circunstâncias onde nasceram e cresceram, desigual.
Trata-se de dar visibilidade e acesso aos múltiplos casos de sucesso que
já existem mas que esbarram, sistematicamente, com todo o tipo de
barreiras ao longo do seu percurso. Trata-se de combater o ‘unconscious
bias’ – o preconceito inconsciente e as práticas racistas que tendem a
ser reproduzidas, de forma explícita, ou inconsciente, e que favorecem
uns e discriminam outros. Temos múltiplos exemplos de que estes
comportamentos, deliberados ou não, existem na administração pública,
nos média, nas empresas, nos partidos políticos, nas universidades, nas
sociedades ocidentais, nomeadamente em Portugal. Não se trata de dar
acesso ‘irrestrito’ e ‘incondicional’ ao ensino superior mas sim
facilitar o acesso ‘aos melhores alunos de cada escola’ naturalmente
partindo do pressuposto que os contextos de cada segmento da população
(nomeadamente em bairros periféricos) são diferentes. Trata-se de
garantir representatividade do que é o nosso tecido sócio-demográfico,
em todas as camadas, e de promover o elevador e a mobilidade social.
Não
se promove a mudança de mentalidades apenas com boas intenções, ações
de formação e de sensibilização nos vários sectores. Enquanto não
tivermos afrodescendentes nas equipas de recrutamento de empresas, nos
média, em lugares de topo na administração pública, nos partidos
políticos, nas artes essa mudança não irá acontecer espontaneamente e o
preconceito prevalecerá. As quotas e as medidas de acção afirmativa são
apenas alguns dos instrumentos que podem ajudar, de forma transitória, a
promover essa visibilidade e a combater os efeitos acumulados desta
desigualdade que percorre gerações.
Bem sei que é fácil e cómodo
reduzir esta discussão a uma dicotomia simplista esquerda/direita,
guerreiros da justiça social vs pragmáticos que defendem a
‘meritocracia’ mas o preconceito ideológico não nos deve cegar para a
realidade em questão.
Quem tem a ganhar com a verdadeira
diversidade e representatividade da nossa composição étnico-racial no
espaço público é o País e a sociedade no seu conjunto. Por isso, não só
podemos, como devemos.
* Assessora para a Inclusão, o Diálogo Intercultural e a Acção Social no Gabinete de Vereação do PSD na Câmara Municipal de Lisboa
IN "OBSERVADOR"
07/07/19
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