e a sátira preguiçosa e sexista
Se querem tanto igualdade, então vamos criticar-vos tanto quanto aos homens no que toca à estupidificação de massas que é o futebol. Foi este o ponto de partida para a capa do Charlie Hebdo sobre o Mundial Feminino de Futebol, mas por mais que o argumento até pudesse ser um exercício de reflexão válido, a sátira deu lugar a apenas mais uma repetição de estereótipos sexistas, que – sem surpresas – reduzem as mulheres ao sexo. A sério que nem no humor se consegue mais do que esta piada básica?
Quer se goste ou não
do registo, a equipa do Charlie Hebdo foi-nos habituando a cartoons
provocatórios sobre os mais variados temas, desde a política ao
terrorismo, da religião ao universo económico. O humor e a sátira são
essenciais enquanto exercício de liberdade de expressão, escusado será
dizer. É preciso que exista espaço livre para metermos o dedo nas
múltiplas feridas das nossas sociedades e questionarmos o mundo que nos
rodeia, mesmo que de vez em quando isto possa até parecer uma afronta a
muitos dos paradigmas que nos regem. Quando isto é feito com
inteligência, é brilhante. Quando é feito com preguiça, é apenas básico
e, como neste caso, pode roçar o azeiteiro e não atingir qualquer
propósito valido.
Muito
fui lendo sobre a capa do Charlie Hebdo sobre o Mundial Feminino de
Futebol, cujo cartoon se reduz a uma vulva entreaberta a ser penetrada
por uma bola de futebol. O título que a acompanha é curto e grosso:
“Vamos ter de comer disto durante um mês” (é a primeira vez que tal
competição consegue ter esta duração, daí essa referência temporal, mas
já lá iremos quanto à escolha da frase).
Muita gente se indignou
automaticamente, achando repulsiva a forma como se abordava o tema, não
só pela sexualização da mulher – reduzida à sua genitália – como pela
própria desvalorização de um acontecimento que é um marco na história do
desporto feminino e que tem trazido para a esfera pública a discussão
sobre uma série de tópicos tão importantes quanto a diferença de
prémios, oportunidades ou obstáculos colocados a atletas masculinos e
femininos, e o que tudo isto nos diz sobre a desigualdade de género.
Por
outro lado, é curioso como tanta gente também tentou ver nesta capa um
símbolo de poder, ora porque a bola poderia significar um clítoris e
isto ser sinónimo de um mês de prazer para as mulheres, ora porque
finalmente se enaltecia a genitália feminina sem pudor, e isso é
empoderamento feminino.
Tentar ver o lado positivo deste tipo de questão
é não só um voto de boa fé, parece-me, mas também de certa forma uma
tentativa de demonstrar que nós, mulheres, não estamos a sempre a ver
coisas erradas onde elas até podem não existir, como agora tanto se
apregoa. Isto parece-me um ponto de partida por si só representante de
alguma desigualdade, como se as mulheres tivessem necessariamente de
justificar as razões que as levam ao descontentamento, quando essas
mesmas razões deviam ser do senso comum, mas adiante. Muitas
interpretações foram feitas, é certo, mas basta ler o editorial para se
chegar a uma triste constatação: este cartoon podia ser uma crítica
brilhante e pertinente, mas cai no erro de ser apenas preguiçoso e
reforçador de estereótipos.
O editorial – que podem ler clicando aqui
– explica que no Charlie Hebdo a crítica é válida para todos, e que
sendo o futebol um evento de massas que consideram patético, altamente
corrupto e pouco adaptado à escala humana enquanto negócio, um evento
desta dimensão merece ser satirizado, independentemente dos seus
intervenientes. Aliás, o facto de as mulheres, no seu caminho pela
igualdade de oportunidades, seguirem as pisadas erradas dos homens
parece ser o ponto chave para a crítica implícita. Por mais que ache
sempre por si só já um mau sinal penalizarmos duplamente as mulheres por
repetirem os mesmos erros dos homens, como se estas tivessem de ser
dotadas de uma superioridade moral enquanto seres humanos quando da vida
em geral se fala, percebo o ponto de vista. E até acho que esta poderia
ser uma reflexão pertinente, já que o sucesso feminino numa atividade
masculinizada acaba também por depender de uma série de esquemas
económicos que lhe traga uma dimensão e lucros associados que assim o
permitem. Sem dinheiro envolvido, algum dele de proveniência duvidosa e à
conta de uma massificação da modalidade que muitas vezes ultrapassa os
tais valores humanos, não há crescimento da mesma. Muito bem,
critiquemos isto, faz sentido. Mas depois lemos o editorial todo e há
sinais de alerta no tom de desdém com que é escrito que nos levam a
perceber o resultado final que fica tão aquém das expectativas.
“A
igualdade hoje em dia é uma religião”, lê-se algures na prosa, que
compara o sucesso de vendas deste Mundial Feminino a um novo detergente
da roupa (pergunta para queijinho: se fosse um campeonato masculino
fazia-se alusão um produto da esfera doméstica? (Estas subtilezas dizem
muito). Religião e igualdade de género não são temas sequer
equiparáveis, e a mensagem que se acaba por passar está longe de ser uma
que assente no domínio da razão. Como se a discussão sobre igualdade de
género assentasse apenas numa crença num deus qualquer abstrato e não
uma necessidade de consciência plena sobre o respeito por direitos
humanos básicos que se traduzem em pilares tão simples – mas longe de
serem reais – como a igualdade de oportunidades, segurança, direitos e
de dignidade entre homens e mulheres.
Um
editorial que faz esta comparação, que considera que as mulheres querem
é ser iguais aos homens nos tempos que correm (a sério que ainda acham
que a luta pela igualdade é sobre isto?) e que reforça que hoje em dia
vivemos num mundo onde qualquer homem branco acima dos 50 anos está
sujeito a ser criticado mal ponha o pé em falso a falar com ou sobre
mulheres, é um editorial escrito por alguém que na realidade não percebe
bem o que está em causa quando deste tema falamos. E que muito
provavelmente não percebe que a demanda das mulheres por um mundo mais
equilibrado não é apenas uma demanda feminina, mas de todas as pessoas
que percebem que já vai sendo tempo de retificarmos um desfasamento
histórico que tem causado inúmeros prejuízos às vidas de milhões de
vidas mundo fora. O que acontece no universo do futebol é apenas mais um
exemplo.
Não
me admira, portanto, que surja uma capa em que mais uma vez reduz a
mulher àquilo que tem entre as pernas, retirando-lhe qualquer outra
dimensão da sua existência. E que se opte por fazê-lo com recurso ao
cliché de um estereótipo reproduzido à medida do prazer masculino e não
da emancipação ou prazer feminino. Não é certamente ao acaso que a vulva
está a ser penetrada por um objeto que ainda, quer queiramos quer não, é
um símbolo masculino, e que o título use o jargão “comer disto”, é
basicamente reduzir a mulher ao naco de carne do costume, aquele que é
comido das mais variadas formas – física, emocional, moral, fantasiosa,
social – pelo sexo masculino. Isto leva-nos mais uma vez a desfocar do
essencial e a menosprezar a mulher enquanto ser humano para além do seu
potencial sexual e erótico. É triste que nem mesmo a sátira consiga ir
mais longe quando decide colar-se ao tema da igualdade e que caia no
erro de recorrer à sexualização da mulher como primeira estratégia de
abordagem a um tema que até podia fazer sentido. É como os comentários
que se ouvem por cá nas bancadas durante os jogos de futebol feminino,
que invariavelmente se reduzem a frases sexuais como “comia-te toda”,
“belas mamas” ou “abocanha aqui”. Pelo vistos, no humor passa-se o
mesmo: se o tema envolve mulheres, basta desenhar uma vulva, fazer um
piadinha porca com duplo sentido e já está. Não é só o respeito que está
em crise, pelos vistos a imaginação também. Enfim.
IN "EXPRESSO"
17/06/19
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