28/05/2019

EKER SOMMER

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Picardias

Neste Portugal à moda dos Joes que por aí andam a verdade até está bem à vista. Não serve é de nada

Há coincidências que não lembram ao diabo! Eis-me às voltas nas aulas a dar a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, o tal do “Fernão, mentes? Minto!”, e salta para a ribalta Joe Berardo, o comendador madeirense que, entre os serviços prestados à Pátria portuguesa, deixa um calote de cerca de mil milhões de euros que, nas suas contas peregrinas, não é dele mas das empresas dele.

Perguntar-me-ão o que é que a obra literária mendesiana tem a ver com a obra de esperteza “berardiana”. À primeira vista, pouco ou nada. À vista mais profunda, tudo ou quase tudo.
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Na verdade, para quem já não se lembra ou sabe, Mendes Pinto foi um pé rapado que andou viajando 21 anos pelo oriente, logo após os descobrimentos, na mira de, à semelhança dos seus contemporâneos, enriquecer à custa da exploração do mundo novo recém descoberto pelos seus predecessores, verdadeiros heróis à maneira clássica cantados na épica de Camões. É, aliás, no confronto com Os Lusíadas que o relato autobiográfico do viajante quinhentista, coetâneo do grande poeta, ganha maior interesse na medida em que surge como o contraponto do texto camoniano, expondo a faceta menos heroica dos portugueses no além mar.

Se Camões anunciara já, timidamente, o descalabro dos conterrâneos do seu tempo, espécie de novos ricos nascidos do manancial de riquezas que os descobridores potenciaram, Mendes Pinto confirma-o, mostrando ao mundo, e a nós, leitores do futuro, que, afinal, o português de herói apenas tem a picardia de saber desenrascar-se quando cheira a dinheiro. “Sair eu [...] muito rico em pouco tempo, que era o que eu mais pretendia que tudo”, confessa o próprio Mendes Pinto, desta feita não na qualidade do português do império que Camões mitificou, mas de herói pícaro que, como a designação deixa adivinhar, não é mais do que uma espécie de Zeca esperto que, oriundo de um berço humilde, vive de expedientes, a maioria dos quais escusos, para sobreviver e/ou enriquecer. É, se preferirmos, o Sancho Pança do oriente que, de pés bem assentes na terra, mostra quanto pode o vil metal na condição humana, sobretudo na portuguesa. Sim, porque de heróis pícaros está a nossa história cheia. Principalmente a mais recente, cujo grau de visibilidade desmarcara o anti-herói em direto e em tempo real. Basta ligar o canal da Assembleia da República e assistir a comissões de inquérito como a de Joe Berardo, um herói pícaro na aceção da palavra que trocou o oriente por um Portugal de vacas gordas, compadrios e servilismo aos poderes económico e financeiro, onde códigos de honra são letra morta e nada mais. Um Portugal onde a pilhagem é subtil e sofisticada, onde quem detém algum tipo de poder procura encher os bolsos e não hesita em favorecer os que o melhor o servem para que também eles possam fazer o mesmo. Em suma, um Portugal à Joe Berardo que, entre gargalhadas insultuosas, soma e segue.

E se em Peregrinação a verdade surge moldada pelo imaginário romanesco de Mendes Pinto, neste Portugal à moda dos Joes que por aí andam a verdade até está bem à vista. Não serve é de nada. Porque, a bem dizer, a picardia dá jeito(s) a muita gente.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
25/05/19

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