23/02/2019

ISABEL MENÉRES CAMPOS

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Salas de chuto: 
porque não

Num tempo em que as políticas públicas penalizam o consumo de tabaco, álcool, sal e açúcares, é paradoxal esta facilitação e até incentivo do consumo de drogas, quando a toxicodependência é um flagelo.

Voltará ao debate, em breve, a questão da instalação de salas de consumo assistido, vulgarmente designadas por salas de chuto.

O tema surge da necessidade de repensar o combate ao flagelo da toxicodependência, que é hoje sentido sobretudo nos grandes aglomerados urbanos de forma intensa, gerando situações de alarme social e ao qual o Estado é chamado a dar resposta.

No relatório europeu sobre drogas refere-se que, actualmente, há uma diminuição da predominância das drogas injectáveis, paralelamente a um aumento do consumo de novas substâncias psicoactivas, assim como do consumo de opiáceos e canabinoides sintéticos, consumo esse muito facilitado pelas vendas na internet. O aumento da preferência por estas substâncias gera cada vez mais problemas de saúde pública associados. Paralelamente, assistimos ao debate em torno da liberalização do consumo, da produção e da venda de canábis para fins recreativos, quer na forma de resina, quer na forma herbácea.

A implementação das salas de consumo assistido relaciona-se com o elevado número de mortes causadas por overdose de opiáceos, as quais podem ser controladas com a administração de naloxona, um medicamento antagonista dos opiáceos capaz de reverter uma overdose. Outro problema causado pelas drogas injectáveis, que se pretende combater, é a propagação e o contágio das doenças infecciosas como as hepatites e o HIV. E pretende-se também evitar o consumo destas substâncias em público, que acarreta sempre degradação do ambiente urbano.

As drogas injectáveis e os opiáceos fumados representam, na verdade, uma percentagem reduzida do consumo global de drogas na Europa, com maior percentagem de consumidores de canábis, cocaína, MDMA, anfetaminas e novas substâncias psicoactivas. Estas têm, no seu conjunto, maior protagonismo. Refira-se que há inúmeros consumidores de canábis que iniciam tratamento: em 2017, registaram-se para iniciar o tratamento 83.000 toxicodependentes.

Quanto ao consumo de opiáceos de alto risco, em Portugal, há cerca de 1 a 8 casos por cada 1.000 habitantes, o que é assinalável, e as mortes por overdose estão em tendência crescente entre os consumidores de drogas de alto risco.

Impõe-se, portanto, tomar medidas preventivas para a redução do risco de overdose, sendo apontadas como soluções as salas de consumo assistido, a administração domiciliar de naloxona, os tratamentos de substituição, a consciencialização e a capacitação dos toxicodependentes, as campanhas para reduzir a vulnerabilidade dos consumidores de alto risco.

As salas de consumo assistido são espaços onde os toxicodependentes podem consumir, em condições seguras e de higiene, opiáceos injectáveis ou fumados, sempre trazidos pelos próprios. A finalidade destas salas, onde estarão técnicos de saúde, é impedir a overdose, possibilitar a actuação imediata no caso em caso de esta acontecer e, por outro lado, referenciar toxicodependentes para tratamento, sensibilizando-os para os problemas associados à adição. Apontam-se como outros benefícios das salas de chuto a redução dos comportamentos de risco, da transmissão de doenças, do consumo em público e a consequente melhoria do ambiente urbano.

Todavia, analisado mais de perto a questão, parece-nos que há argumentos em desfavor que não são de desprezar.

A instalação das salas de chuto aponta para uma normalização ou trivialização do uso de drogas de alto risco e parece ser um caminho perigoso e curto para a sua descriminalização e até legalização. Por outro lado, perpetua o problema, ao invés de o combater e representa um sinal altamente contraditório do Estado na resposta ao problema: o Estado diz “não podes drogar-te mas nós ajudamos-te na mesma”. Além do mais, é inevitável o surgimento de problemas associados como o incremento do tráfico nas zonas adjacentes aos centros de consumo assistido, com o consequente e inevitável aumento da criminalidade e da insegurança (o efeito “pote de mel”), como sucede, por exemplo, em Paris na zona da Gare du Nord, como se pode ver aqui.

O efeito prático acaba por ser a atenuação do peso da proibição e a banalização do uso de substâncias ilícitas com a ilusão de uma aceitação tácita da sociedade, ao invés de se prevenir ou incrementar políticas públicas de combate ao problema. Acresce que os problemas que se pretendem evitar são já levados a cabo com programas alternativos, como a troca de seringas, tratamentos de substituição, administração domiciliar de naloxona. Os países onde as salas de consumo assistido foram implementadas estão longe de alcançar resultados desejáveis, havendo até quem afirme que, em alguns, se registou um aumento do consumo.

Numa altura em que as políticas públicas penalizam severamente o consumo de tabaco, álcool e sal e açúcares, é altamente paradoxal esta facilitação ou até incentivo do consumo de drogas, como sucede, por exemplo, com a tentativa de liberalização do consumo de canabinoides, sendo certo que ninguém pode negar que a toxicodependência é um dos flagelos da sociedade contemporânea. Note-se que o consumo da canábis aumenta a probabilidade de desenvolver doenças psicóticas, perdas cognitivas e alterações de comportamento, com efeitos muito negativo na adolescência, em fase de maturação do sistema nervoso central, além de que o consumo de marijuana aumenta o risco de dependência e a propensão para o uso de outras drogas ilícitas, entre outras consequências.

Os recursos financeiros que as entidades públicas pretendem gastar com esta medida deveriam ser alocados para o tratamento e para a prevenção e há muito trabalho a fazer nesta matéria. As vantagens que as salas de consumo assistido poderiam trazer são mínimas se comparadas com as consequências que trazem em termos de saúde e de segurança públicas.

Todavia, não podemos simplesmente rejeitar a ideia, sem oferecer alternativas sérias e uma estratégia de luta contra o problema que é uma questão humanitária. É preciso ter mais gente qualificada para a assistência no terreno, combater de forma serrada a oferta de droga no mercado, incentivar e promover os tratamentos e oferecer alternativas de integração e capacitação aos toxicodependentes e ex-toxicodependentes. Numa visão humanista, não pode haver excluídos da sociedade, nem podemos desistir de alguns: toda a pessoa tem direito à sua dignidade.

Advogada e Professora Universitária; escreve segundo a ortografia antiga.

IN "OBSERVADOR"
21/02/19

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