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Salas de chuto:
porque não
Num tempo em que as políticas públicas penalizam o consumo de
tabaco, álcool, sal e açúcares, é paradoxal esta facilitação e até
incentivo do consumo de drogas, quando a toxicodependência é um flagelo.
Voltará ao debate, em breve, a questão da instalação de salas de consumo assistido, vulgarmente designadas por salas de chuto.
O tema surge da necessidade de repensar o combate ao flagelo
da toxicodependência, que é hoje sentido sobretudo nos grandes
aglomerados urbanos de forma intensa, gerando situações de alarme social
e ao qual o Estado é chamado a dar resposta.
No relatório europeu sobre drogas
refere-se que, actualmente, há uma diminuição da predominância das
drogas injectáveis, paralelamente a um aumento do consumo de novas
substâncias psicoactivas, assim como do consumo de opiáceos e
canabinoides sintéticos, consumo esse muito facilitado pelas vendas na
internet. O aumento da preferência por estas substâncias gera cada vez
mais problemas de saúde pública associados. Paralelamente, assistimos ao
debate em torno da liberalização do consumo, da produção e da venda de
canábis para fins recreativos, quer na forma de resina, quer na forma
herbácea.
A implementação das salas de consumo assistido relaciona-se com o elevado número de mortes causadas por overdose de
opiáceos, as quais podem ser controladas com a administração de
naloxona, um medicamento antagonista dos opiáceos capaz de reverter uma overdose.
Outro problema causado pelas drogas injectáveis, que se pretende
combater, é a propagação e o contágio das doenças infecciosas como as
hepatites e o HIV. E pretende-se também evitar o consumo destas
substâncias em público, que acarreta sempre degradação do ambiente
urbano.
As drogas injectáveis e os opiáceos fumados representam,
na verdade, uma percentagem reduzida do consumo global de drogas na
Europa, com maior percentagem de consumidores de canábis, cocaína, MDMA,
anfetaminas e novas substâncias psicoactivas. Estas têm, no seu
conjunto, maior protagonismo. Refira-se que há inúmeros consumidores de
canábis que iniciam tratamento: em 2017, registaram-se para iniciar o
tratamento 83.000 toxicodependentes.
Quanto ao consumo de opiáceos
de alto risco, em Portugal, há cerca de 1 a 8 casos por cada 1.000
habitantes, o que é assinalável, e as mortes por overdose estão em tendência crescente entre os consumidores de drogas de alto risco.
Impõe-se, portanto, tomar medidas preventivas para a redução do risco de overdose,
sendo apontadas como soluções as salas de consumo assistido, a
administração domiciliar de naloxona, os tratamentos de substituição, a
consciencialização e a capacitação dos toxicodependentes, as campanhas
para reduzir a vulnerabilidade dos consumidores de alto risco.
As
salas de consumo assistido são espaços onde os toxicodependentes podem
consumir, em condições seguras e de higiene, opiáceos injectáveis ou
fumados, sempre trazidos pelos próprios. A finalidade destas salas, onde
estarão técnicos de saúde, é impedir a overdose, possibilitar a
actuação imediata no caso em caso de esta acontecer e, por outro lado,
referenciar toxicodependentes para tratamento, sensibilizando-os para os
problemas associados à adição. Apontam-se como outros benefícios das
salas de chuto a redução dos comportamentos de risco, da transmissão de
doenças, do consumo em público e a consequente melhoria do ambiente
urbano.
Todavia, analisado mais de perto a questão, parece-nos que há argumentos em desfavor que não são de desprezar.
A
instalação das salas de chuto aponta para uma normalização ou
trivialização do uso de drogas de alto risco e parece ser um caminho
perigoso e curto para a sua descriminalização e até legalização. Por
outro lado, perpetua o problema, ao invés de o combater e representa um
sinal altamente contraditório do Estado na resposta ao problema: o
Estado diz “não podes drogar-te mas nós ajudamos-te na mesma”. Além do
mais, é inevitável o surgimento de problemas associados como o
incremento do tráfico nas zonas adjacentes aos centros de consumo
assistido, com o consequente e inevitável aumento da criminalidade e da
insegurança (o efeito “pote de mel”), como sucede, por exemplo, em Paris
na zona da Gare du Nord, como se pode ver aqui.
O
efeito prático acaba por ser a atenuação do peso da proibição e a
banalização do uso de substâncias ilícitas com a ilusão de uma aceitação
tácita da sociedade, ao invés de se prevenir ou incrementar políticas
públicas de combate ao problema. Acresce que os problemas que se
pretendem evitar são já levados a cabo com programas alternativos, como a
troca de seringas, tratamentos de substituição, administração
domiciliar de naloxona. Os países onde as salas de consumo assistido
foram implementadas estão longe de alcançar resultados desejáveis,
havendo até quem afirme que, em alguns, se registou um aumento do
consumo.
Numa altura em que as políticas públicas penalizam
severamente o consumo de tabaco, álcool e sal e açúcares, é altamente
paradoxal esta facilitação ou até incentivo do consumo de drogas, como
sucede, por exemplo, com a tentativa de liberalização do consumo de
canabinoides, sendo certo que ninguém pode negar que a toxicodependência
é um dos flagelos da sociedade contemporânea. Note-se que o consumo da
canábis aumenta a probabilidade de desenvolver doenças psicóticas,
perdas cognitivas e alterações de comportamento, com efeitos muito
negativo na adolescência, em fase de maturação do sistema nervoso
central, além de que o consumo de marijuana aumenta o risco de
dependência e a propensão para o uso de outras drogas ilícitas, entre
outras consequências.
Os recursos financeiros que as entidades
públicas pretendem gastar com esta medida deveriam ser alocados para o
tratamento e para a prevenção e há muito trabalho a fazer nesta matéria.
As vantagens que as salas de consumo assistido poderiam trazer são
mínimas se comparadas com as consequências que trazem em termos de saúde
e de segurança públicas.
Todavia, não podemos simplesmente
rejeitar a ideia, sem oferecer alternativas sérias e uma estratégia de
luta contra o problema que é uma questão humanitária. É preciso ter mais
gente qualificada para a assistência no terreno, combater de forma
serrada a oferta de droga no mercado, incentivar e promover os
tratamentos e oferecer alternativas de integração e capacitação aos
toxicodependentes e ex-toxicodependentes. Numa visão humanista, não pode
haver excluídos da sociedade, nem podemos desistir de alguns: toda a
pessoa tem direito à sua dignidade.
Advogada e Professora Universitária; escreve segundo a ortografia antiga.
IN "OBSERVADOR"
21/02/19
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