.
“Em função das características do organismo e da resposta imunitária, que uma determinada forma de vacina é capaz de espoletar, opta-se pela que funciona melhor e é mais eficaz. Não há uma regra, é preciso testar. Muitas vezes para uma mesma doença podemos testar diferentes abordagens”, explica Miguel Prudêncio.
.
HOJE NO
"PÚBLICO"
Vacinas são uma das “intervenções médicas que mais vidas salvaram”
Desenvolver uma vacina é um processo complexo e moroso. Miguel Prudêncio, investigador no Instituto de Medicina Molecular, explica porque é que esta é uma das opções mais eficazes na prevenção de determinadas doenças e porque é que é tão difícil criar uma vacina.
Criar uma vacina é um processo longo. Pode levar três décadas ou mais
desde a concepção de uma ideia até que chegue ao mercado. Mas porquê
pensar numa vacina para combater uma doença infecciosa em vez de um
outro tratamento? A vacina deve conter o agente infeccioso por inteiro
ou apenas uma parte, vivo ou morto? Será eficaz? E por quanto tempo vai
garantir imunidade? As perguntas são sempre muitas, as respostas vão-se
sabendo ao ritmo das descobertas de quem investiga.
No Instituto
de Medicina Molecular (IMM), no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, uma
equipa de 14 pessoas liderada pelo investigador Miguel Prudêncio
trabalha desde 2010 na concepção de uma vacina contra a malária. Um
parasita que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), foi responsável por 435 mil mortes no mundo
em 2017 — sobretudo na África Subsariana. A investigação portuguesa não
é a única a tentar resolver este quebra-cabeças que permitirá salvar
muitas vidas. Sobretudo de crianças com menos de cinco anos, já que é
até esta idade que se registam a maioria das mortes.
Quando concorreu à fase I do programa Grand Challenges Explorations,
da Fundação Bill & Melinda Gates, o que a equipa tinha “era só uma
ideia com zero resultados” vinda de uma conversa no laboratório. Mas o
que apresentou foi suficiente para assegurar um primeiro financiamento,
em Novembro de 2010. Durante três anos, a equipa trabalhou para provar
que a ideia — a de criar uma vacina com um organismo naturalmente
atenuado que pudesse proteger contra a malária — podia passar à prática.
A Fundação Bill & Melinda Gates achou o mesmo e em Novembro de 2013
os investigadores portugueses do IMM receberam um segundo financiamento para continuar a investigação.
“Este projecto não existia se não fosse a Fundação Gates”, afirma
Miguel Prudêncio. No total, receberam cerca de 1,6 milhões de euros.
Os desafios
O que leva os investigadores a optar por explorar o desenvolvimento de uma vacina e não outra solução?
Miguel
Prudêncio esclarece: “As vacinas são por excelência a forma mais eficaz
de proteger contra uma determinada infecção. Os antibióticos e vacinas
são as duas intervenções médicas que mais vidas salvaram desde que
existem. É indiscutível.” Mas adverte: “Temos sempre de salvaguardar a
possibilidade de haver pessoas que não foram vacinadas por qualquer
razão e temos de ter formas de as tratar.” “Os dois [procedimentos] têm
de existir.”
E o que se quer com uma vacina? “Ensinar o sistema imunitário a
reconhecer determinado organismo que causa a doença e desta forma estar
preparado para a combater.” Existem várias maneiras de o fazer. Usar o
organismo que provoca a doença numa versão atenuada para que seja
reconhecido pelo sistema imunitário; optar apenas por uma parte do
organismo — a que se percebeu que faz activar mais as defesas; usar o
organismo morto. Há ainda uma outra opção, mas menos comum, que é o
recurso a toxinas que são produzidas por esse agente infeccioso que
causa a doença para produzir a vacina.
“Em função das características do organismo e da resposta imunitária, que uma determinada forma de vacina é capaz de espoletar, opta-se pela que funciona melhor e é mais eficaz. Não há uma regra, é preciso testar. Muitas vezes para uma mesma doença podemos testar diferentes abordagens”, explica Miguel Prudêncio.
A malária é exemplo disso.
“Há laboratórios no mundo a trabalhar quer em vacinas de subunidade [só
usam uma parte do organismo] quer em vacinas de organismo inteiro.
Dentro destas, já se testou com um organismo morto — já se sabe que não
funciona — e com o organismo atenuado.”
Em todos os casos, o princípio é sempre o mesmo: levar o sistema
imunitário a aprender a reconhecer quem o ataca, desenvolver respostas
imunitárias para o combater e imprimir-lhe uma memória para que o corpo
se saiba defender sempre que identifique o organismo causador da doença.
E porque falamos de sistemas complexos, também aqui não há uma solução
linear. A duração desta memória depende da doença. É isso que explica a
existência de vacinas que se tomam uma vez na vida e outras que têm
reforços.
Mais uma vez, a complexidade de todo este processo está
longe de ficar por aqui. “Existem respostas imunitárias de vários tipos.
Os anticorpos são uma das vertentes, mas há outras, como as respostas
do tipo celular, células T, linfócitos T”, diz o investigador. “Há
dentro dos tipos de respostas que podemos ter contra um determinado
patogénico [o que provoca a doença] diferentes tipos de células
envolvidas. Existem células que respondem de uma forma mais duradoura ao
longo do tempo — as chamadas ‘células de memória’ — e células que têm
uma resposta mais imediata ou circunscrita no tempo.”
Os
antigénios (proteína do organismo com que estamos a vacinar que serve de
molde para uma resposta imunitária) que vão estimular essas células não
funcionam de igual forma em todas as doenças e não se sabe à partida o
tipo de resposta que se vai conseguir. E, embora existam formas de
estimular as células com mais memória, há uma parte que é inerente ao
tipo de moléculas envolvidas, aos antigénios que estão a ser
apresentados, à forma como são reconhecidos e combatidos que ultrapassam
a capacidade da intervenção humana.
A malária é particularmente desafiante no que toca a esta característica.
Mesmo
para quem vive nas áreas onde a doença é habitual e já está, de certa
forma, imune à infecção, a saída dessas zonas durante alguns anos torna a
pessoa tão vulnerável à malária como aqueles que nunca estiveram em
contacto com o parasita. “A memória naturalmente adquirida é pequena”,
explica Miguel Prudêncio.
.
.
Do conceito à prática
“Em teoria e do ponto de vista
estritamente científico, é concebível que todas as doenças infecciosas
sejam vacináveis. Trata-se de encontrar a maneira correcta de ensinar o
sistema imunitário a reconhecer aquele organismo. Pode é não ser fácil e
em alguns casos não é, porque o organismo é muito complexo — como é o
caso do parasita da malária —, noutros porque é altamente mutável, como
por exemplo no VIH”, diz Miguel Prudêncio.
.
“Grosso modo,
temos doenças causadas por bactérias, vírus e parasitas”, refere o
investigador, salientando que para o caso de infecções provocadas por
parasitas em humanos ainda não existe uma vacina licenciada. E isso
leva-nos ao trabalho que desenvolvem no IMM. Existem várias estirpes do
parasita da malária, mas nem todos afectam as pessoas. A mais mortal
para os humanos é o Plasmodium falciparum. Para provocar a doença, tem de passar pelo mosquito e pelo ser humano
e durante o percurso que faz num hospedeiro e no outro vai mudando
várias vezes de forma. E é por isso, mas não só, que tem sido tão
complexo o processo de criação de uma vacina.
“A ideia é ensinar o sistema imunitário a combater o parasita antes
de ele chegar ao fígado. Se conseguirmos uma vacina que bloqueie a
entrada no fígado ou que o parasita seja eliminado ainda neste órgão,
não há doença”, explica o investigador. Esta é a solução que está mais
avançada em termos de investigação. Existe já uma vacina de subunidade
chamada RTS,S, desenvolvida pela GlaxoSmithKline, que já realizou um vasto conjunto de ensaios, mas cuja protecção oscila entre os 30% e os 50%, segundo a OMS. A investigação já leva quase 30 anos.
Outros
ensaios, com melhores resultados em termos de eficácia, têm-se focado
no uso do organismo por inteiro, mas atenuado. A forma mais comum tem
sido a radiação. A solução proposta pelo grupo liderado por Miguel
Prudêncio é diferente. “O que propusemos foi conceber uma estratégia em
que pudéssemos usar todo o potencial de uma vacina de organismo inteiro
sem utilizar o parasita que causa a doença nas pessoas.” Para isso,
recorreram à estirpe Plasmosdium berghei, que usa roedores como hospedeiro. Ou seja, uma versão naturalmente atenuada.
“O que fizemos foi criar um parasita de roedor Plasmosdium berghei geneticamente modificado ao inserir-lhe um antigénio do parasita humano que sabemos ser mais imunogénico. Continua a ser um Plasmosdium berghei — e a não ser patogénico para as pessoas —, mas agora vestido com um casaco de parasita humano.”
Mas porquê usar este parasita geneticamente alterado e não replicar a
solução que serviu para criação da vacina da varíola (uso de um
organismo semelhante ao que infecta humanos)? “Fizemos experiências de
imunização em modelos animais e chegámos à conclusão de que havia um
tipo de resposta imunitária, as células T, que era praticamente igual
quer se imunizasse com um ou o outro parasita. Mas só quando se imuniza
com o modificado é que há anticorpos [outro tipo de resposta imunitária]
suficientemente específicos para reconhecer o Plasmodium falciparum e bloqueá-lo. E isso faz toda a diferença.”
O trabalho pré-clínico demorou dois anos. Os resultados obtidos foram
“suficientemente promissores” para que a equipa e a Fundação Gates
concordassem que valia a pena testar a vacina em seres humanos.
Mas antes de se avançar para este passo foram precisos mais dois anos
de ensaios de segurança, “para mostrar até onde era possível ir e que
não havia risco de se administrar às pessoas”. Ensaios de fase 1
(segurança) e 2 A (que já envolve eficácia) iniciados em 2017, usando 18
voluntários saudáveis, decorreram na Holanda durante cerca de ano e
meio.
Os resultados finais ainda não são conhecidos. Será em
função deles que se avaliará passos futuros. A complexidade de todo este
processo e o que se seguirá mostra que, “quando as vacinas são
licenciadas, está absolutamente demonstrada a sua eficácia e segurança”,
reforça Miguel Prudêncio.
* Só os sabichões, aqueles que provavelmente acreditam ser possível aterrar num chaparro vinda do céu, dizem que as vacinas são inúteis.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário