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Arquitecta; presidente da Assembleia Municipal de Lisboa
Imobiliário público
– um alerta
Alertei António Costa para tudo isto. Aconselhei Fernando Medina a não alienar imóveis municipais ao FNRE nestas condições. Do alto dos meus 71 anos, já vi muito. E temo bem que o futuro venha a confirmar os meus receios.
A escassez de oferta de arrendamento acessível é um fenómeno que em
Portugal começou nos centros históricos, por múltiplas razões, e já está a alastrar a zonas periféricas.
Os preços continuam a subir para desespero de muita gente. Não ignoro
os efeitos das recentes alterações legais ao arrendamento, que reforçam
direitos dos inquilinos, na redução da oferta privada. Mas a oferta
pública, que devia ajudar a compensar estes efeitos, não tem surgido.
O programa de arrendamento acessível do município de Lisboa está
parado no Tribunal de Contas. O programa de arrendamento acessível
prometido pelo Governo só agora chegou ao Conselho de Ministros.
Infelizmente, e com tristeza o digo, não se vislumbram resultados a
curto prazo.
O artigo 65.º da Constituição comete ao Estado o dever de garantir a
todos o direito à habitação. Mas durante décadas esta incumbência teve
apenas dois instrumentos: bonificar juros na compra de casa e congelar
rendas. A promoção pública foi uma excepção, com o programa de
erradicação das barracas em Lisboa e Porto nos anos 90. Fora isso, os
sucessivos orçamentos de Estado esqueceram a habitação. Como se o
problema não existisse e o dever do Estado estivesse cumprido.
É minha convicção que esta ausência de investimento público na
habitação não se resolve com engenharias financeiras criativas. Não vejo
como será possível aumentar substancialmente a oferta de arrendamento
se o Estado não fizer a sua parte. Os municípios poderão fazer mais, mas
o dever primeiro é do Estado.
Vem isto a propósito do desenvolvimento do Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado, o FNRE,
posto em marcha em 2017. O objectivo à partida pareceu-me louvável –
mobilizar edificado público devoluto, reabilitá-lo e destiná-lo a
arrendamento acessível. Apoiei a medida. Também apoiei a possibilidade
de recorrer a investimento do Fundo de Estabilização Financeira da
Segurança Social. A solução nem sequer era nova. Foi com verbas da
Federação das Caixas de Previdência que no passado se construíram e
geriram milhares de habitações económicas.
Sucede, porém, que os tempos são outros. Num quadro de
financeirização crescente da habitação, o modelo de gestão do FNRE
parece-me envolver demasiados riscos. A ideia é que Estado e autarquias
alienem a este Fundo, a troco de unidades de participação (UP), imóveis
devolutos cuja adaptação a fins habitacionais o Fundo avalia. Para isso,
a entidade gestora, que é a Fundiestamo,
promove todas as acções necessárias até à reabilitação e colocação no
mercado dos imóveis que tenham condições para o efeito. Mas é preciso
garantir uma rentabilidade de 4% aos detentores de UP. Para isso,
definiu-se como limite da área reabilitada para habitação o mínimo de
51%, podendo o restante ser destinado a outros fins. Todo o processo,
desde a escolha dos projectistas à contratação de obras, pode ser feito à
margem do Código da Contratação Pública, uma vez que a Fundiestamo é
uma sociedade anónima. O escrutínio do Fundo e de cada um dos seus
subfundos é feito pela CMVM e pelos detentores de UP.
Na prática,
estamos perante um fundo imobiliário constituído inicialmente por
património público, gerido por uma entidade de capitais públicos, que
depois entra no jogo da livre concorrência com os demais fundos
imobiliários e afins para garantir a rentabilidade desejada. De caminho,
o património imobiliário deixa de ser público, a contratação de obras
deixa de ser obrigatoriamente por concurso e até a escolha dos
projectistas é decidida à margem de qualquer procedimento concursal.
Creio que o risco de se perder o devido escrutínio público no processo é
muito elevado. Todos nos lembramos das vicissitudes da “Parque
Escolar”, com investimento público de algumas centenas de milhões de
euros. O investimento da Segurança Social previsto é muito mais elevado:
1400 milhões de euros. Nada garante que os 51% ou mais de uso
habitacional sejam de facto para arrendamento acessível. E nada impede
que os restantes usos não sejam destinados a finalidades mais rentáveis e
até especulativas.
Alertei
António Costa para tudo isto. Parece-me um modelo demasiado arriscado,
que pode vir a trazer muitos amargos de boca. Aconselhei Fernando Medina
a não alienar imóveis municipais ao FNRE nestas condições. Dizem-me
ambos que não tenho razão. Do alto dos meus 71 anos, já vi muito. E temo
bem que o futuro venha a confirmar os meus receios. Torno-os públicos
por um dever de cidadania. Se estiver errada, serei a primeira a
reconhecê-lo.
Arquitecta; presidente da Assembleia Municipal de Lisboa
IN "PÚBLICO"
19/02/19
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