09/01/2019

ALFREDO BARROSO

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Um turismo de massas delirante

Ao invés dos fugitivos, o turismo das massas dá lucros do caraças – e conta imenso para o PIB

O exemplo da aldeia aparentemente idílica de Hallstatt, na região da Alta-Áustria, a meio caminho entre Viena e Munique – e que tanto poderia ser o habitat natural da menina Heidi como a ilustração arquitectónica dum bolo de noiva muito enfeitado –, é a demonstração delirante dos extremos a que pode chegar o chamado turismo de massas. Não só da “massa” que corresponde a lucros bestiais, como das “massas” de chineses que agora substituem as “massas” de japoneses nos fluxos de turistas que demandam esta Europa já tão escangalhada por dirigentes políticos medíocres, incompetentes e oportunistas, e acossada pela Comissão Europeia, por duas décadas de moeda única, o euro, pelo Brexit que aí vem, e por “ditaduras democráticas” vigentes na Hungria, na Polónia e na Turquia, para além de outros países ameaçados ou já governados por políticos da extrema-direita neofascista, que também já conseguem ganhar eleições.

Incapaz de acolher com dignidade os enormes fluxos de fugitivos da guerra e da miséria que lavram em vários países de um Médio Oriente incendiado pelos exércitos dos EUA e de outros países-membros da NATO, a Europa recebe de braços abertos os gigantescos fluxos de turistas, sobretudo os de olhos em bico, autênticas hordas ao mesmo tempo pacíficas e devastadoras (no sentido mais pachola do termo). Ao invés dos fugitivos, o turismo das massas dá lucros do caraças – e conta imenso para o PIB. 

Tomando o exemplo da minúscula aldeia de Hallstatt – com 780 habitantes e um milhão de turistas, sobretudo chineses, em 2018 – não será difícil perceber o que quero dizer. Como escreve Hasnaim Kazim num texto publicado no “Courrier International” (edição portuguesa de Janeiro), até os urinóis públicos, que cobram um euro por cada mijinha e não só, rendem 150 mil euros por ano ao concelho de Hallstatt. Fora o custo para estacionar veículos com manadas de turistas, fora dos limites da idílica aldeia, que agora é de 30 euros por dia, mas que até poderá subir, em breve, para os 100 euros por dia!

Estarão os habitantes satisfeitos com esta invasão de tanta massa? Claro que não! E nem é por racismo ou xenofobia. O problema deles é já não haver praticamente mais nada além das lojas de souvenirs, e o supermercado local, pensado para turistas, vender sobretudo garrafas de água e ímanes para portas de frigoríficos – além de, imagine-se, garrafas com o ar que se respira na aldeia. Em contrapartida, cenouras, saladas e outros alimentos para cozinhar são cada vez mais raros e, quando os há, são 30 % mais caros do que o normal. “Uma perfeita loucura, não acho isto normal!”, protesta um aldeão.

Mas viajemos desta aldeia turística da Alta-Áustria – com os seus 780 habitantes mais ou menos cilindrados, cada ano, por um milhão de turistas – até à bela cidade lacustre de Veneza – com os seus 261 905 habitantes mais ou menos a afundar-se, cada ano, sob o peso de 28 milhões de turistas e das “Reboleiras” em forma de navios de cruzeiro que já navegam pela cidade dentro, provocando ondulações que desgastam as fundações dos edifícios. Esta magnífica cidade italiana já foi classificada, há muito, como património mundial pela UNESCO, que ameaçou, em 2016, colocá-la na lista de “cidades património mundial em perigo” se nada fosse feito para a preservar. Por isso foram aprovadas taxas a cobrar aos turistas que queiram visitar a cidade que poderão render 40 a 50 milhões de euros por ano, destinados a pagar a limpeza das imensas porcarias causadas em toda a parte pelos visitantes. Viver em Veneza tornou-se insuportável para os seus habitantes, que protestam contra o turismo de massas que os invadiu.

Como salientava em 1985 a dupla de escritores italianos Fruttero &Lucentini, numa das suas admiráveis crónicas reunidas no livro “La prevalenza del cretino” (“A predominância do cretino”): “Se bem repararmos, veremos que a terminologia relativa ao turismo é, em boa parte, semelhante à militar: vanguardas, colunas, exércitos, vagas sucessivas, ordem unida e por aí fora. E o turista solitário, estoirado de cansaço, acocorado no degrau duma porta, à sombra, de olhar perdido, indiferente a tudo, corresponde à imagem dum soldado inimigo em retirada que, já vencido, suscita apenas comiseração.” E com mais crueldade ainda, eles escrevem: “Se o mundo está cheio de papalvos ociosos que andam à procura de distracções epidérmicas, de pequenas emoções, de pequenas surpresas, de relações fúteis, por que carga d’água terei de lhes proporcionar praticamente de borla (privando-me eu próprio desse prazer) a visão de Piero della Francesca e de Donatello?

Venham lá, então, esses pacíficos bárbaros, espezinhar os mosaicos sagrados, os degraus sagrados, mas que paguem bom preço para visitar a Torre de Pisa. E que, às portas de Florença e de Roma, uma multidão de neo-alfandegários seja incumbida de ‘vender’ cada cidade aos preços do mercado. E institua-se uma ‘bolsa’ das maravilhas a visitar.”

O certo é que, face à brutal pressão do turismo de massas, e dispostos a preservar as cidades e seus habitantes dos efeitos negativos desse turismo, são já vários os poderes públicos, por essa Europa fora, que endurecem as medidas para o controlar, em vez de o deixarem à mercê das agências de viagens e do aumento galopante e desertificante dos alojamentos locais via Airbnb.
Em Barcelona, por exemplo, até já há bandeirolas com a inscrição “Tourist Go Home” e passaram a ser pagas as visitas a sítios famosos como o Parque Güell, onde só é autorizada a presença de 400 pessoas de cada vez.
Amesterdão também aumentou as taxas turísticas e impôs restrições ao trânsito de viaturas e barcos, assim como ao mercado de alojamentos via Airbnb.
A Islândia, assustada com o aumento brutal de turistas – passaram de 500 mil em 2010 para dois milhões em 2017 –, prepara-se para preservar as suas paisagens e endurecer as medidas contra os turistas que causem estragos e lixo e que desrespeitem os regulamentos locais em vigor.
Até na Tailândia já está a produzir efeitos positivos o encerramento ao público, em Junho de 2018, da famosa praia de Maya Bay (a do filme “A Praia”): os tubarões de ponta preta já estão de regresso, desde Novembro. Para grande azar dos “tubarões” da indústria turística…

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07/01/19

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