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HOJE NO
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
Uma igreja, dois papas: a "guerra"
entre Bento e Francisco
Ao contrário do previsto, Bento não se enclausurou num convento para nunca mais ser visto ou ouvido, e, de acordo com uma análise publicada na revista Vanity Fair, não se inibe de mandar recados e arregimentar tropas. Mais uma pedra no sapato de Francisco, sem mãos a medir face à tempestade do abuso sexual.
A guerra entre conservadores e liberais no seio da Igreja Católica não é de agora, decerto. Mas é a primeira vez da história da instituição em que cada um dos lados tem um papa - vivo.
E se um deles tem o cognome de "emérito", a verdade é que, se houve
quem pensasse que iria passar o resto da vida em recolhimento e oração,
"desaparecendo" do mundo dos vivos, enganou-se. Bento nunca saiu do
Vaticano e nem sequer se mantém em silêncio.
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GRRR... |
E prossegue: "Em 2013, Bento anunciou inesperadamente a sua
resignação. Era o primeiro papa a fazê-lo em quase 600 anos. Mas a
seguir, ao contrário dos que muitos esperavam, não se enfiou num obscuro
mosteiro bávaro. Ficou no mesmo sítio, continuando a aceitar ser
tratado por 'sua santidade', a usar ao peito a cruz de bispo de Roma, a
publicar, a encontrar-se com cardeais, a fazer pronunciamentos. A sua
mera existência encoraja os conservadores que querem minar o reinado de
Francisco."
É, considera o jornalista, uma situação para a qual é
difícil encontrar precedentes. "Com que podemos comparar esta
circunstância de uma igreja com dois papas? Estamos nos domínios dos
arquétipos e do mito. Pensemos no Rei Lear, que deu todo o poder mas se
manteve perto para controlar, resultando em desastre, ou no fantasma em
Hamlet. A mera presença de um ex papa já seria o suficiente para pôr em
causa a força de espírito e a independência de Francisco desde o
primeiro dia."
"O meu papa é Bento", diz Salvini
Poderia o simpático João XXIII, pergunta Cornwell, "ter iniciado a
reforma do Concílio Vaticano Segundo se Pio XII, o seu autocrático
predecessor, estivesse a observar, lugubremente, de uma janela vizinha? E
iria João Paulo II abanar a árvore apodrecida da União Soviética se o
angustiado e hesitante Paulo VI , que chegou a ponderar uma concordata
com Moscovo, estivesse a puxar-lhe pelo braço?"
O escritor acha que não: "Qualquer que seja a direção do papado,
esquerda ou direita, para o melhor ou o pior, é a iniciativa única e
exclusiva de um papa de cada vez que lhe confere suprema autoridade e
poder. O segredo da unidade católica é a lealdade, em todas as
circunstâncias, ao único supremo pontífice vivo. A briga entre os leais a
Francisco e os insurgentes de Bento ameaça provocar a maior divisão na
Igreja Católica desde a Reforma do século XVI, quando Martinho Lutero e
outros reformistas lideraram a revolta protestante contra o Vaticano." E
cita o historiador Diarmaid MacCulloch, da Universidade de Oxford:
"Dois papas é a receita para um cisma."
Ainda por cima, dois papas com visões tão diferentes.
Desde que João Paulo II o nomeou Prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé, ou, nas palavras de Cornwell, "fiscalizador chefe da
doutrina, em 1981, o então cardeal Joseph Ratzinger defendeu uma Igreja
Católica mais pequena, limpa de imperfeições. A visão de Francisco é
diametralmente oposta: quer uma igreja aberta, acolhedora,
misericordiosa para com os pecadores, hospitaleira face aos estranhos,
respeitosamente tolerante de outras fés. Procura encorajar os que
duvidam, consolar os feridos, e trazer de volta os excluídos pela
respetiva orientação. Compara a igreja a um hospital de campanha para os
espiritualmente doentes."
As trincheiras são tão óbvias que se consubstanciam em tshirts: Matteo
Salvini, atual ministro da Administração Interna e líder do partido de
extrema-direita Liga (antes Liga Norte), que se notabiliza pelas suas
posições xenófobas, foi fotografado em setembro de 2016 com uma em que
se vê a cara de Francisco com ar horrorizado com o escrito "O meu papa é
Bento". É normal: se Francisco passa a vida a apelar ao acolhimento de
refugiados, Salvini quer vê-los todos pelas costas. Mas será normal que,
estando vivo e a observar, Bento não rechace este tipo de apoio? Tanto
mais que, como Cornwell frisa, o papa "reformado" continua a opinar e a
fazer-se ouvir - quer diretamente quer através de outros.
"Um ofício papal alargado" ou "só um papa"?
Um desses outros é o seu secretário, o arcebispo alemão Georg
Gänswein. Este, que vive na atual residência do papa emérito - a qual,
conta Cornwell, fora um convento para 12 freiras contemplativas no tempo
de João Paulo II e que Bento mandou renovar e preparar (luxuosamente,
parece) quatro meses antes de anunciar a sua renúncia - declarou
em maio de 2016 que Francisco e Bento representam um único ofício papal
"alargado", com um membro "ativo" e um "contemplativo". Francisco, terá
rejeitado a ideia de imediato: "Só há um papa."
Desde essa altura, diz Cornwell, a relação entre o papa investido e o emérito ter-se-á deteriorado. Em julho de 2017, no enterro do cardeal conservador (e crítico de Francisco) Joachim Meisner, arcebispo emérito de Colónia, Gänswein leu uma carta de Bento. Esta contém, no entender do autor do artigo da Vanity Fair, uma frase que pode ser considerada muito desestabilizadora do pontificado do atual papa. Nesta, Bento diz que Meisner estava convencido de que "o Senhor não abandona a Sua Igreja, mesmo que o barco tenha metido tanta água que esteja à beira de afundar." Para Cornwell, Bento parece estar a dizer que a Igreja Católica comandada por Francisco está a afundar-se.
Mas não fica por aqui: em setembro último, Gänswein deu uma palestra
na biblioteca do parlamento italiano por ocasião do lançamento da
tradução italiana do livro The Benedict Option (A opção de Bento),
do escritor americano Rod Dreher, descrito por si mesmo como um
"conservador empedernido". O livro defende que a civilização ocidental,
nomeadamente os EUA, se encaminham para um tempo de caos e negritude,
uma nova idade das trevas, e que o caminho é voltar aos ensinamentos de
Bento de Núrsia, o fundador dos monges beneditinos. Gänswein explicou à
audiência que a crise de abuso sexual na Igreja Católica é a idade das
trevas da instituição, o 11 de setembro católico. Um paralelismo que foi
interpretado por Dreher como significando que o salvador atual é o papa
emérito.
Cornwell encontra outros sinais de perversidade - não é
muito difícil perceber para onde pende o seu coração na disputa que
descreve - na conduta de Bento, até antes de renunciar. Refere por
exemplo o facto de em 2012, pouco antes de anunciar a sua
inesperada decisão, ter nomeado o bispo conservador Gerhard Ludwig
Müller para o lugar que fora seu sob João Paulo - ou seja, designando um
conservador de linha dura para fiscalizador da doutrina (num ministério
que está também encarregado de investigar casos de abuso sexual) do
qual o seu sucessor teria dificuldade em retirá-lo sem parecer
desrespeitador - de facto, Francisco só o substituiu em 2017. E não só
nomeou Gänswein como seu secretário pessoal como também chefe de
gabinete do papa - o que significa dirigir a residência papal no palácio
apostólico, onde é suposto os papas viverem e trabalharem. Tal, frisa
Cornwell, permitiria ao secretário e homem de confiança do papa emérito
monitorizar toda a atividade do novo pontífice.
O que significa que a decisão de Francisco de não ocupar as luxuosas instalações que há séculos são a casa dos papas pode ter também tido a ver com dar a volta a Bento e Gänswein - pelo menos na interpretação de Cornwell. Assim, instalou-se na modesta Casa Santa Marta, onde ficam os clérigos que visitam o Vaticano. Permite a Gänswein que organize receções nos aposentos papais para reis e chefes de Estado, mas o resto do tempo está fora do alcance do secretário de Bento.
É possível um cisma?
Frisando que, aos 91 anos, cinco após resignar, Bento parece manter
vigor físico e mental, Cornwell interroga-se sobre os motivos da sua
resignação. E sobre que estratégia terá em vista. Será que um cisma, ou seja, a divisão da Igreja Católica em duas, é possível?
Certo é que, conclui o jornalista, se assiste a um impasse. Francisco está cada vez mais isolado e acossado por escândalos sucessivos; a presença de Bento e as suas intervenções não ajudam, pelo contrário.
Mas se, argumenta Cornwell, é tentador assacar a culpa deste impasse a
Bento, o rígido moralista e o defensor de uma igreja mais pequena e
mais pura, aquele que resignou sem deixar o palco, aquele cuja mera
existência mina a autoridade de Francisco, também há motivo para
acreditar que este último tem os seus próprios motivos para querer
provocar uma crise.
E explica: "Desde os primeiro dias do
papado, falou de forma a sugerir que procura, que provoca, que pede uma
mudança massiva numa autoritária, dogmática teimosamente inamovível
Igreja que mostra os seus frutos amargos nos milhares de jovens fiéis
abusados em todo o mundo católico. Uma purga drástica dos privilégios
obstinados, do secretismo, da riqueza, do tradicionalismo, da falta de
transparência e de controlo, pode ser a condição necessária de um novo
começo."
* Bagunça na católica, porreiro pá!
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