24/09/2018

ANDRÉ SILVA

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Podes violá-la porque
 ela estava a pedi-las

Naquela noite, podes acabar por ser violada por dois homens na casa de banho de uma discoteca, quando estavas desmaiada, depois de teres bebido os tais copos a mais.

Imaginem-se num ambiente festivo, já com uns copos a mais, a dançar com toda a liberdade, uns flirts, umas selfies, aquele gritinho especial quando dá vossa música preferida. Depois, é a ressaca do dia seguinte: optar por pequeno-almoço com mais gorduras para compensar o desgaste, pedir a bebida gaseificada, rever as fotos meias desfocadas, lembrar a festança entre sorrisos e dores de cabeça. É fácil fazer este exercício, porque provavelmente já todas e todos nos vimos neste cenário.

Mas nem sempre é assim. Naquela noite, podes acabar por ser violada por dois homens na casa de banho de uma discoteca, quando estavas desmaiada, depois de teres bebido os tais copos a mais. Naquela noite, a tua vida pode mudar para sempre por causa deles, que decidiram abusar do teu corpo, da tua independência, da tua vontade, da tua liberdade, da tua sexualidade, do teu direito a existir. Aqueles dois homens, que estavam conscientes, decidiram impor as suas vontades sobre ti, sem o teu consentimento. E tu, em completo desgaste físico e mental, usas as tuas últimas forças para levar estas pessoas a tribunal. No mínimo, faça-se justiça, pensas.

Só que neste caso não se fez justiça. O Tribunal da Relação do Porto decidiu manter em liberdade dois homens que violaram uma mulher em 2016 numa discoteca em Vila Nova de Gaia, quando esta estava inconsciente, alegando que o mal feito - a "ilicitude" - não era elevado. Diz o acórdão do tribunal que: "A culpa dos arguidos [embora nesta sede a culpa já não seja chamada ao caso] situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua, ocasionalidade (não premeditação), na prática dos factos".


Para mim, isto é novo: não percebo o que de "ocasional" tem uma violação. Não percebo o que tem a ver "sedução mútua" com violação. Não percebo o que tem a ver álcool com violação. E pior: não há ilícitos mais ou menos elevados. Violação é violação: é o abuso sexual de uma pessoa incapaz de resistência. Praticar sexo não consentido é de uma violência extrema, é altamente condenável e este caso era mais do que merecedor de prisão efectiva.

Desculpando os agressores, o Tribunal decidiu pela pena suspensa, mesmo depois de uma argumentação completíssima a favor da vítima da parte do Ministério Público, que inclusivamente captou escutas em que os agressores confirmam a sua intenção sobre esta mulher, com pleno conhecimento de que estava desmaiada e indefesa.

Neste caso tão grave, é inaceitável que o Tribunal da Relação do Porto veja uma violação como se de uma infracção das regras do trânsito se tratasse. Perdes uns pontos da carta de condução, levas uma advertência e aí talvez deixes de abusar.

Assim se normaliza em Portugal a ideia de que se pode abusar do corpo de terceiros, já que a consequência acaba por ser a simples sujeição a um julgamento. No final, até parece que a culpa é dela, que bebeu copos a mais e se calhar até levou uma saia mais curta nessa noite.

Desculpem, mas não me conformo. Isto é demasiado injusto. Quem cala - ou quem desmaia - não consente, e assusta-me pensar que a Justiça em Portugal possa pensar o contrário.

IN "SÁBADO"
21/09/18

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