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Floresta e descarbonização:
biomassa ou biofarsa?
Não existe nenhum sumidouro de carbono quando ardem áreas enormes de plantações florestais – o que existe é mais um grande emissor de carbono.
O Governo português anunciou há dois anos que pretendia atingir a
“neutralidade carbónica”, isto é, que as suas emissões de gases com
efeito de estufa seriam contrabalançadas pelos sumidouros de carbono,
como forma de combater as alterações climáticas. Cada vez fica mais
claro que nunca passou de um exercício cosmético e de propaganda, tendo o
Governo autorizado furos petrolíferos ao mesmo tempo que abre a porta
para entregar o grande potencial de sumidouro para uma nova área de
negócios à fileira do papel e da biomassa: queimar floresta para
energia.
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É reconhecido no plano internacional que as florestas podem ter um
papel de destaque na descarbonização da sociedade. Em teoria, quanto
mais rápido o crescimento das árvores, mais rápido se processa o
sequestro de carbono. Seria válido, desde que depois não se cortassem as
árvores no curto prazo. E ainda menos válido se a madeira ficasse em
produtos de ciclo curto, como a queima para energia ou o fabrico de
pasta para papel (ao contrário da madeira para construção ou
mobiliário). E de validade nula com a falta de gestão que hoje predomina
nas áreas florestais em Portugal.
É preciso deitar por terra um
mito importante: uma floresta não é um sumidouro de carbono só por si.
Quando olhamos para as áreas florestais portuguesas isso torna-se claro.
Uma área florestal estabilizada, composta por múltiplas espécies que
interagem entre si, com capacidade de retenção de solos e água, pode ser
de facto um sumidouro de carbono, retendo-o nas suas raízes, no solo
com que interage, no seu tronco, nas suas folhas, durante décadas ou até
séculos. Uma área florestada com espécies de crescimento rápido,
instalada com mobilização e fertilização de solos, “tratada” com
agro-químicos, cortada uma dúzia de anos depois, com enorme potencial de
arder nessa dúzia de anos não é um sumidouro de carbono. O carbono que
retém será perdido assim que for processado numa fábrica, seja ela para
produzir pasta de papel ou energia, o que manifestamente ocorrerá em
pouco mais do que uma década.
A diferenciação entre conceitos de floresta, aceitando ou não a
presença de plantações florestais, é central para a questão de ser ou
não sumidouro de carbono: Portugal aceita o conceito oficial da FAO
(Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação), que
inclui as plantações florestais de espécies exóticas (e em Portugal
estas predominam em área). Considerando a maneira como são geridas estas
plantações, em Portugal é absurdo considerar as suas áreas florestais
actuais como um sumidouro de carbono. Não são. E isto ainda sem sequer
falar de incêndios florestais.
Dizer que se vai apostar no papel da floresta (plantações incluídas)
para a descarbonização da sociedade portuguesa é totalmente incompatível
com qualquer ideia de expandir as áreas de plantações florestais, em
particular de eucalipto. Entende-se a dificuldade da governação em gerir
esta bipolaridade, entre a redução de emissões e a disseminação de
“fósforos” pelo território nacional, conhecidas que são as portas
giratórias entre o poder político e as celuloses em Portugal. Parte dos
intervenientes no debate sobre o papel da floresta na descarbonização da
sociedade enfermam deste vício. Não foi por isso de estranhar então um
debate recente do Roteiro para a Neutralidade de Carbono 2050, em que o
debate acerca do contributo da floresta para a neutralidade carbónica
foi totalmente dominado pelos interesses das celuloses e dos defensores
de grandes regadios (e o interesse das celuloses em começar a regar
eucalipto já é notório e público).
O absurdo de defender a queima
de biomassa florestal como medida de mitigação das alterações climáticas
em Portugal é um exercício muito esforçado para esconder realidades: a
enormidade dos incêndios florestais, a evidente desflorestação, a
escassez de água e o predomínio total no território nacional de
plantações de espécies exóticas e invasoras.
De acordo com os dados do Instituto de Conservação da Natureza e das
Florestas, só entre 1 de Janeiro de 2016 e meados de 2017 (a 30 de
Junho) foi validada e autorizada a expansão da área de plantações de
eucalipto em novos 5657 hectares. Ou seja, o actual Governo é
responsável por 57% das novas áreas de eucaliptal validadas e
autorizadas no âmbito do regime jurídico aprovado em 2013 (a “lei dos
eucaliptos”). Apesar da Estratégia Nacional para a Floresta, aprovada em
2015, limitar a 2030 a área de eucalipto em Portugal a 812 mil
hectares, o facto é que, de acordo com a FAO, a área de plantações de
exóticas em Portugal ascendia, em 2015, aos 900 mil hectares.
É
clara a tendência de envolvimento crescente dos povoamentos florestais
nos incêndios rurais. Desde a aprovação da Lei de Bases da Política
Florestal, em 1996, que essa tendência é crescente. O facto regista-se
apesar de o país se confrontar com uma situação de desflorestação, ou
seja, de mudança do uso do solo de floresta para outras ocupações,
maioritariamente para matos. Esta tendência crescente ocorre em
simultâneo com a redução da área de pinheiro-bravo, segundo os dados do
Inventário Florestal Nacional, e do crescimento da área de eucalipto
(defendida esta última como cultura de rentabilidade para os pequenos
proprietários, embora os dados de rendimento agrícola neguem esta
ideia). Acontece, porém, que, mesmo neste último caso, quanto maior a
área de eucalipto, mais se regista o seu envolvimento na área ardida
total e na área ardida em floresta. Apesar de em 2017, sobretudo com os
incêndios de Outubro, se ter identificado uma enorme área de pinhal
bravo ardido, onde o património do Estado assume destaque, o eucaliptal
terá atingido a maior área ardida até hoje registada em Portugal, na
ordem dos 90 mil hectares, superior ao registado em 2003. Se, em 1996, a
área de eucalipto estava envolvida em cerca de 3% da área ardida total e
em cerca de 13% da área ardida em floresta, em 2016 as percentagens
respectivas foram de 24% e 50% e em 2017 (dados provisórios) de 19% e
39%.
Não existe nenhum sumidouro de carbono quando ardem áreas
enormes de plantações florestais – o que existe é mais um grande emissor
de carbono. Essa é a realidade que nos é legada por áreas florestais
abandonadas e eucaliptizadas.
No
rescaldo dos incêndios do ano passado passou a estar na moda falar de
queimar biomassa para produzir energia, como se isso servisse para
combater incêndios. Não serve. Passou também a falar-se de
biorrefinarias para transformar madeira em combustível para meter nos
depósitos dos automóveis, como se isso servisse para, de alguma modo,
combater incêndios. Não serve. Perante o enorme drama humano e a
destruição dos incêndios de 2017, o oportunismo tomou conta dos
acontecimentos e, em vez de se procurar soluções para resolver a questão
dos incêndios, procuraram-se novas maneiras de fazer dinheiro, com o
enorme favor do Estado. Tanto para a questão do combate às alterações
climáticas como para o combate aos incêndios florestais, a queima de
biomassa é uma biofarsa.
Para culminar este processo, a
ideia mirabolante de criar um “novo Alqueva” no Tejo, o chamado
“Projecto Tejo”, ignorando olimpicamente os impactos ambientais
negativos que a intensificação agrícola associada ao próprio Alqueva
está a ter sobre o Alentejo. Não nos devemos iludir acerca da
possibilidade de este projecto vir a servir para regar eucaliptos para
queima e celulose – é seguramente parte do plano. O nível de ilusão
acerca de rendimentos futuros assume nos dias de hoje contornos
criminosos: usar os nossos recursos em declínio como a água, os solos e a
biomassa para queimar só servirá para dar dinheiro a meia dúzia de
grupos económicos e consultoras. Não combaterá incêndios, não conservará
solos e água, não contribuirá de maneira alguma para a descarbonização
ou para combater as alterações climáticas. A única coisa que faria tudo
isso era criar e gerir uma verdadeira floresta, de múltiplas espécies,
múltiplos usos, apoio aos produtores e que servisse para sustentar uma
população rural./span>
JC - Investigador em Alterações Climáticas
IN "PÚBLICO"
07/06/18
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