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Como nascem os Brunos
É isso que assusta. Porque os Brunos de Carvalho do futebol antecipam o que poderá ser um dia o aparecimento dos Brunos de Carvalho da política. E, a avaliar pelo que vimos no Sporting, o povo está maduro para lhes abrir os braços. O povo e as pretensas elites, que se julgava educadas para defender a democracia contra a demagogia. Talvez tenham complexos de enfrentar os demagogos quando eles se reclamam do povo e se dizem seus defensores. Mas é assim mesmo que morrem as democracias: às mãos dos demagogos e pela deserção das elites. Desejo sinceramente que o Sporting não morra. Mas, se morrer, ou se for ao fundo durante uns anos, ao menos que sirva de exemplo.
IN "EXPRESSO"
19/05/18
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Como nascem os Brunos
de Carvalho.E porque
devem ser mortos à nascença
O futebol é uma coisa
bem mais séria do que muitos, que não se interessam por futebol, pensam:
quanto mais não fosse, se ele não existisse, a vida seria profundamente
mais infeliz para milhões de seres humanos que não têm muitos outros
motivos para ser felizes, e o mundo seria, consequentemente, um lugar
mais perigoso para habitar. No seu livro “Uma Vida Inventada”, a actriz
brasileira Maitê Proença conta o que a sua primeira e tardia experiência
de uma ida ao futebol, no Maracanã, mais lhe deu que pensar: que tinha
inveja dos homens que tinham essa coisa do futebol onde, durante uma
hora e meia, podiam deitar fora todas as frustrações, as raivas e as
alegrias irracionais acumuladas ao longo de todos os outros dias. “Nós,
mulheres, não temos nada de semelhante”, concluía ela. Hoje, já não é
tanto assim, mas só por esta simples descrição — que é apenas parte do
grandioso enredo do jogo e do espectáculo que é o futebol — é fácil
perceber o potencial de perigo que existe em permitir que este jogo e
indústria que envolve as emoções à flor da pele de multidões possa cair
em mãos de salteadores de estrada.
O futebol já conheceu vários, ao nível top:
Silvio Berlusconi, em Itália, foi talvez o exemplo mais completo,
reunindo em si mesmo o controlo do então maior clube do Calcio, o AC
Milan, o controlo da maior rede de televisões e jornais italianos e a
presidência do Conselho de Ministros. Mas outros houve, notórios
bandidos, que atingiram o poder máximo, como Bernard Tapie, dono da
Adidas, um império no material desportivo, e presidente do Olympique de
Marseille, que fez campeão europeu, antes de perder o título por provada
corrupção desportiva; o seu compatriota Michel Platini, presidente da
UEFA, um dos melhores jogadores de sempre, caído em desgraça também por
provada corrupção na compra de votos; o mesmo que fez cair o suíço
Joseph Blatter, todo-poderoso presidente da FIFA, implicado no escândalo
da compra de votos para o Mundial do Qatar; ou o cappo di tutti cappi,
o brasileiro João Havelange, anos a fio também presidente da FIFA e
anos a fio sabidamente corrupto, ele e o seu genro e sucessor. Foi tanta
e tão escandalosa a trafulhice das altas instâncias do futebol europeu e
mundial e tanto e cada vez mais o fluxo de milhões envolvido na
indústria do futebol, com o alastramento das transmissões televisivas à
Ásia e à América do Norte, que os novos patrocinadores e as novas
produtoras televisivas trataram de impor um mínimo de regras de conduta
que garantisse a credibilidade do jogo. Simultaneamente, os novos
patrões dos grandes clubes deixaram de ser milionários ou gentlemen
locais: passaram a ser milionários russos amigos de Putin, em busca de
acreditação e direito de residência em Chelsea e Belgravia, príncipes
árabes, que trocaram os cavalos pelo futebol, marajás indianos, que
viram mais futuro planetário no futebol do que no críquete ou
novos-ricos americanos que pensaram o mesmo do soccer relativamente ao seu football.
Só na periferia do futebol europeu — leia-se, na periferia da Europa — é
que continuou a subsistir a figura do dirigente local, à dimensão do
clube, à escala da sua cidade, muitas vezes da sua paróquia. Portugal,
Grécia, Turquia, é aí que ainda os encontramos.
Em Portugal, como é sabido, a divisão é clara: há os
três grandes, centenários, secando praticamente tudo à roda. E, depois,
com maiores ou menores diferenças, vêm os outros: quase sempre são
dirigidos por sumidades locais, ligadas ao poder local e ao partido
dominante na terra, todos vagamente empresários, declaradamente
incompetentes para a função, fatalmente comendadores e inevitavelmente
ansiosos por protagonismo. Nos três grandes, só um (julgo escusada a
declaração de interesses) tem um presidente estável (há 26 anos), que
percebe do assunto e que ganhou mais títulos que nenhum outro à face da
terra, goste-se ou não dele: chama-se Pinto da Costa. No Benfica, o
maior clube português, em número de adeptos e sócios, Luís Filipe Vieira
vai aprendendo com o tempo a tentar imitar Pinto da Costa, depois do
que foram os anos de vergonha em que o clube sucumbiu à demagogia
larvar, que se viria a revelar também simples assalto financeiro ao
próprio clube, de um pirata chamado Vale e Azevedo. Neste momento,
porém, o céu benfiquista está carregado de nuvens negras de suspeições
sob investigação judicial que, a serem confirmadas, ninguém pode prever
até onde farão tombar na lama o nome do clube. Nesta conjuntura, bem
podem os benfiquistas agradecer a prestimosa ajuda que o inacreditável
presidente do rival lisboeta lhes tem dado para desviar as atenções
deles, chamando-as todas a si, como ele tanto gosta. Falemos então desse
inenarrável Bruno de Carvalho, que 90% dos sócios votantes do outrora
orgulhoso Sporting Clube de Portugal escolheram e voltaram a escolher
para os reconduzir no caminho das glórias passadas.
O
que mais me espantou em Bruno de Carvalho, e desde o primeiro dia, é
que nele, tal como em Vale e Azevedo, não havia motivo para espanto
algum: tudo estava ali, cristalinamente claro. Na cara, na voz, no
discurso, nos gestos, nas atitudes. Aquilo era um demagogo em estado
puro, nem sequer levemente disfarçado. Era um ignorante absoluto, sem
currículo no que quer que fosse, sem projecto algum a não ser o de tomar
conta do clube e declarar guerra a todos os que se opusessem ao
inevitável triunfo do Sporting. E, à vista desarmada, um narciso
doentio, vaidoso e egocêntrico, sedento de um protagonismo insaciável,
um Kim Jong-un da Reboleira. Porém, mais do que os 90% de povo
sportinguista que o seguiram — e que metem medo porque demonstram como a
ocasião pode fazer triunfar o demagogo — o que impressiona é perceber
como tantos que, pelo menos, não poderiam deixar de ver o ridículo do
personagem, o seu evidente descontrolo psicológico, o perigo do seu
distúrbio de personalidade, o aventureirismo da sua óbvia incompetência,
não viram nada disto e até ao fim o seguiram como cordeirinhos para o
matadouro. Como é que um psiquiatra como Daniel Sampaio não percebe que
Bruno de Carvalho é um desequilibrado? Como é que Daniel Oliveira
acreditou mesmo que ele era um génio financeiro que teria resolvido
milagrosamente a dívida do Sporting, sem estranhar que o tenha feito de
forma a obter uma espécie de perdão de dívida do doutor Ricciardi, do
ex-BES e uma venda de 30% do capital da SAD ao doutor Sobrinho,
co-responsável pelo desaparecimento de 4000 milhões de euros do BESA.
Como é que Eduardo Barroso, no auge do caos absoluto instaurado por um
presidente desvairado, decreta clinicamente que tudo não passa de uma
fase de burnout por excesso de trabalho?
É isso que assusta. Porque os Brunos de Carvalho do futebol antecipam o que poderá ser um dia o aparecimento dos Brunos de Carvalho da política. E, a avaliar pelo que vimos no Sporting, o povo está maduro para lhes abrir os braços. O povo e as pretensas elites, que se julgava educadas para defender a democracia contra a demagogia. Talvez tenham complexos de enfrentar os demagogos quando eles se reclamam do povo e se dizem seus defensores. Mas é assim mesmo que morrem as democracias: às mãos dos demagogos e pela deserção das elites. Desejo sinceramente que o Sporting não morra. Mas, se morrer, ou se for ao fundo durante uns anos, ao menos que sirva de exemplo.
IN "EXPRESSO"
19/05/18
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