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Falar crioulo guineense é habitual?
Nasceu na Maternidade Alfredo da Costa?
E cresceu no Zambujal?
O seu pai fazia o quê?
Quantos irmãos tem?
E também têm tendências artísticas?
Há um que ainda joga futebol?
Fez carreira no futebol em Portugal?
Como foi para o Chapitô?
Porquê a ideia de ir para o Brasil?
Um teatro mais popular?
Qual é a série do Ivo Ferreira e qual o papel que vai interpretar?
Quando foi para o Brasil, queria ficar?
E vai continuar no Brasil?
Também tem convites para telenovelas?
Só a atrai se for um bom papel?
E para a mulher ainda é pior?
Integra um movimento de mulheres negras no Brasil?
Sente uma evolução no Brasil em relação aos atores negros?
“As Boas Maneiras” fala da solidão da mulher negra.
* Desssombradamente mulher.
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HOJE NO
"i"
Isabél Zuaa
“Ser mulher, ser preta e ser artista é como se estivesse no final da cadeia alimentar”
A atriz portuguesa tem feito grande parte da carreira no Brasil e sonha em criar uma casa da cultura na periferia de Lisboa
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Acabou de receber um prémio de atriz
revelação no Brasil por causa do seu papel em “Joaquim”, de Marcelo
Gomes, filme que passou pelo Festival de Berlim do ano passado, mas
ainda não se estreou em Portugal. O que se estreou foi “As Boas
Maneiras”, de Marco Dutra e Juliana Rojas - passou no IndieLisboa deste
ano, teve estreia comercial fugaz e, entretanto, já se pode ver em DVD e
nas plataformas de VOD. Pretexto para esta conversa com Isabél Zuaa ou,
simplesmente, Isabel Martins.
Numa entrevista ao “Estado de São Paulo”, aparece a
dizer que para o filme “Joaquim” precisavam de alguém que falasse alguma
língua africana e que...
Ele não anotou nem gravou a entrevista e trocou algumas coisas.
Misturou as perguntas que fez com as respostas que dei. Em todas, não há
uma única que seja, na prática, coerente. É imaginação. Nenhuma das
respostas tinha a ver com aquilo que eu disse. Eu fui encontrada por um
filme que fiz em Portugal, uma curta-metragem do Pedro Peralta, e outro
trabalho cinematográfico que fiz com amigos. Queriam uma atriz
portuguesa com ascendência africana e que falasse uma língua nativa
africana e o português de Portugal, e no filme falo crioulo da
Guiné-Bissau, que é a língua do meu pai.
Falar crioulo guineense é habitual?
É. Quando cheguei ao Brasil em 2010, no intercâmbio do Conservatório
com a Unirio [Universidade Federal do Rio de Janeiro] em Artes Cénicas,
comecei a desenvolver um trabalho sobre identidade, essa coisa do
não-lugar. Ser filha de uma angolana e de um guineense, primeira geração
em Portugal. Conviver com vários cabo-verdianos e, daí, também saber o
crioulo de Cabo Verde. Ir para uma escola de teatro, depois ir estudar
para o Brasil. Entendi que era um não-lugar, não era o biótipo da
portuguesa que muita gente esperava. Quando dizia que era portuguesa,
ficavam admirados - no imaginário das pessoas, não havia portugueses
negros. Consegui fazer um trabalho sobre a identidade, que apresentei em
vários lugares do Brasil, onde falava crioulo da Guiné, português de
Portugal, português do Brasil; era um solo, um trabalho musical,
dançante, cantante.
Esse não-lugar é uma identidade. Há uma identidade africana de Lisboa?
Isso sempre foi uma questão para mim, tentar entender quem realmente
era. Muitas vezes me perguntavam de onde era e eu dizia “nasci em
Portugal”. Parecia que havia um constrangimento da minha parte em dizer
“sou portuguesa”. Os de Angola dizem que sou totalmente guineense,
dentro da família guineense dizem que sou totalmente angolana, dentro
das instituições dizem que sou africana, dentro de casa dizem que sou
portuguesa. Sempre vivi nesse não-lugar.
Hoje já está mais confortável com a sua identidade? Já descobriu quem é?
É uma jornada. Também tem a ver com a mudança de idade: eu vim para o
Brasil com 22 anos e hoje tenho 31. O Brasil também vive uma questão de
identidade muito grande e eu identifiquei-me com essa busca da
ancestralidade e da sua valorização, sem nenhum constrangimento. Vou
sabendo pouco a pouco. Quero mergulhar ainda mais nessa minha
identidade, sinto-me muito feliz, privilegiada por ter acesso a outras
culturas. É uma mais-valia para mim, dá-me potência, dá-me força. Tenho
um grande fascínio, uma grande admiração pela minha história, a história
dos meus pais, do trajeto deles - sinto-me privilegiada.
Nasceu na Maternidade Alfredo da Costa?
Na Estefânia.
E cresceu no Zambujal?
Sim, cresci no Zambujal, de Loures, numa comunidade onde a maioria
era africana - de Cabo Verde, de Moçambique, Guiné-Bissau, Angola - e
havia portugueses de outros lugares, principalmente transmontanos.
Tínhamos vários grupos de dança no bairro onde recriávamos coreografias
de músicas tradicionais, de Angola e do Senegal - foi a minha primeira
manifestação artística. Permaneci nesse grupo até à adolescência. Depois
fui para o Chapitô, a seguir para o Conservatório e, depois, para o
Brasil.
O Kalaf fala muito dos bairros periféricos de Lisboa como fábricas de cultura.
Às vezes tento explicar a diversidade e a versatilidade dos bairros
africanos e a frustração que tenho de não poder contribuir para que essa
cultura se expanda. O meu desejo, a minha grande ambição é criar uma
casa de cultura na periferia de Lisboa. Acredito que se aquelas crianças
e jovens tivessem acesso a mais informação, a mais formação, teríamos
artistas maravilhosos. É tão inerente àqueles corpos, àquelas vozes, são
tão potentes que acho um desperdício de talentos. É uma fábrica de
cultura, de criatividade, feita com muito pouco.
Os seus pais identificavam-na como portuguesa. Dentro de casa havia alguma cultura que se impunha ou era uma mistura?
Era uma mistura muito neutra das duas. O meu pai não quis que
aprendêssemos crioulo - eu só aprendi porque sou muito teimosa. O meu
pai tinha muito medo que tivéssemos dificuldades de comunicação,
principalmente nas instituições de formação e de ensino e, como ele teve
formação académica, não queria que isso fosse uma questão para nós. Ele
via os meus primos, os vizinhos que cresciam em Portugal e não
conseguiam falar português correto. Eu e os meus irmãos crescemos numa
cultura africana misturada, mas super-rígida. O meu pai seguia--nos
atentamente nos trabalhos de casa, nos desportos que fazíamos,
acompanhava-nos a todo o lado. Mas a cultura guineense, através de
rituais, mostrou--se mais presente. A minha mãe foi criada por
portugueses, veio muito nova para Lisboa e perdeu muita da sua cultura,
bem como a língua - do kimbundo e do kikongo só fala algumas palavras.
Fala português e aprendeu a falar o crioulo. Por isso, cultura africana
era mais a guineense e do Senegal, pelas danças que fazíamos nos
encontros de família.
O seu pai fazia o quê?
Era orçamentista de obras públicas e dava aulas. Está reformado,
agora. Neste momento está na Guiné-Bissau, foi fazer uma viagem às
origens.
Quantos irmãos tem?
Somos quatro. Éramos cinco, faleceu o mais velho, antes de eu nascer.
Numas férias de verão morreu afogado, foi uma tragédia. Somos quatro,
uma irmã mais velha, filha do primeiro casamento do meu pai, e nós três,
dois rapazes e eu, que crescemos juntos.
E também têm tendências artísticas?
Sim, mas não exploraram muito. Todos fizemos dança. Eles cantavam,
mas foram para desporto - um deles ainda joga futebol. O outro tem um
gosto musical muito apurado e muito eclético, e está agora a desenvolver
questões de DJ. Estamos a pensar gravar algumas músicas que gostamos
muito de cantar.
Há um que ainda joga futebol?
Joga, mas já está mais velho, tem 34 anos, e está a jogar e a trabalhar no Luxemburgo.
Fez carreira no futebol em Portugal?
Os dois fizeram a escola do Sporting, depois foram para o Alverca. Um
foi para os Açores, o outro começou um percurso pelo leste, Rússia,
Letónia (Ventspills), e depois jogou em Angola - pediu a dupla cidadania
e jogou uns cinco anos em Angola, no Primeiro de Agosto e no Líbolo [e
Bravos do Maquis]. Chama-se João Martins e as pessoas que o conhecem e
seguem o futebol dizem que não teve muita sorte por causa das lesões em
momentos cruciais da carreira.
Como foi para o Chapitô?
Tinha acabado o liceu e deixara uma disciplina em atraso, e isso foi
muito triste para mim porque era muito rigorosa com as notas. E como
tinha um ano só para isso fui-me inscrever, vi que tinha cursos de
interpretação teatral, uma coisa que queria explorar. O acordo com os
meus pais era, em primeiro, acabar uma faculdade diferente e depois
fazer o curso de teatro, só que essa coisa do Francês levou--me ao
Chapitô, e a professora encantou--se comigo e deu-me força para ir para o
Conservatório no ano seguinte. Fui, entrei com uma boa nota. Fiz
Teatro, só que não quis acabar o curso lá, quis acabar o curso no
Brasil.
Porquê a ideia de ir para o Brasil?
Queria mais do que o mercado em Portugal me estava a dar. Em 2008,
2009, alguns alunos do Conservatório eram indicados para fazer
espetáculos, para algumas produções, e eu era indicada e só não ficava
por ser preta. E isso deixou-me muito revoltada, muito triste. No
mercado de Angola, que estava muito efervescente nas publicidades, não
me queriam porque usava cabelo natural e não representava a beleza da
mulher angolana, com extensões até à cintura - um estereótipo que,
felizmente, está a mudar. E. também porque era ousada e falava, não era
submissa. No mercado português, as portas eram muito complexas - eu
tentava, os professores tentavam, e nada. E disse: “Não quero ficar em
Portugal. Não vou viver frustrada, quero fazer coisas.” Nunca tinha
vindo ao Brasil, mas havia um convénio do Conservatório e acabei por vir
e ficar cá no Rio de Janeiro. Não foi fácil, mas encontrei aqui um
lugar para poder compartilhar a minha arte e aprender - um momento de
partilha e nutrição muito bons. E há oportunidades em Portugal que só
consigo por ter estado aqui.
O mercado para atores negros em Portugal também melhorou. Há uma mudança nesta última década.
Sim, também. Mas ainda falta tanto!
Há o trabalho do Rogério de Carvalho, a companhia do Teatro Griot, peças de teatro só para atores negros...
E há produções de novelas. Mas não tenho visto muito. Fiz bastante
teatro nos últimos anos em Portugal e foi muito bom. Voltar, estar em
casa - estava com muitas saudades. Fiz um projeto o ano passado com a
Mala Voadora que ganhou alguns prémios. Mas espero que haja mais. Vou
fazer outras coisas e tenho desejo que as artes sejam descentralizadas -
é tudo muito para os grandes centros, tudo muito elitista -, que
cheguem a mais lugares.
Um teatro mais popular?
Sim, popular no bom sentido, que chegue a mais pessoas. Mas, dizia,
vou ter agora uma participação na série do Ivo Ferreira para a RTP. O
ano passado fiz um episódio noutra série para a RTP, para o Dia da
Mulher, com a Teresa Paixão e o Daniel Gorjão.
Qual é a série do Ivo Ferreira e qual o papel que vai interpretar?
A série chama-se “Sul” e vou fazer uma inspetora da Judiciária.
Acabei de receber o guião. Eles começaram no dia 15, mas como vou rodar
aqui, só vou para lá no final de julho, início de agosto. Acho que é
para se estrear ainda este ano.
Quando foi para o Brasil, queria ficar?
Não. Vinha por cinco meses, só que as coisas foram surgindo muito
rápido. Fiz uma oficina onde estava uma portuguesa que produzia um
diretor [encenador] - que, inclusive, vai estrear agora um espetáculo no
Teatro Nacional, em Lisboa [Gustavo Ciríaco encena “Cortado por todos
os lados, aberto por todos os cantos”, integrado no programa do
Alkantara Festival] - e acabei por ir fazer uma oficina com ele e
colaborar nos seus espetáculos durante cinco anos.
E vai continuar no Brasil?
A minha base, agora, é Lisboa. Já estou em Lisboa há ano e meio, mas
venho fazer trabalhos ao Brasil. Vim fazer um espetáculo no final do ano
com o Filipe Hirsch, chamado “Selvageria”, e também um filme. E agora
vim fazer duas produções. Só venho para trabalhar.
Desde a rodagem de “As Boas Maneiras”, o ano passado, está
cheia de novos projetos, uns já acabados, outros em pré-produção. A sua
carreira parece estar a descolar no Brasil?
Tenho recebido bastantes solicitações e tenho agentes que me estão a
ajudar a gerir as escolhas. O Brasil tem sido muito generoso comigo.
Foi o papel no “Joaquim” [no filme de Marcelo Gomes, Isabél
Zuaa interpretou o papel da escrava que impele Tiradentes à revolta] que
abriu essas portas?
Sem dúvida. O “Joaquim” chegou a muito mais pessoas. Mas “As Boas
Maneiras”, que vai estrear-se agora, aqui no Brasil, e que esteve no
Indie, não foi feito por convite, eu respondi a uma solicitação
[anúncio] na internet. Mandei o meu material e depois fui fazer o
casting; nem sabia para o que ia. Comecei a ler o roteiro e fiquei
admirada, nunca tinha feito nada daquilo. Mas o “Joaquim”, sim,
impulsionou-me bastante, e agora recebi um prémio de atriz revelação
aqui no Brasil [prémio Guarani]. Fiquei muito surpreendida, fui
escolhida entre mais de 150 filmes por mais de 100 críticos. É um prémio
muito especial. Continuo a colaborar com o Marcelo Gomes. Estamos a
escrever um roteiro que partiu de um convite dele para desenvolver o
personagem da Preta.
Também tem convites para telenovelas?
Tive alguns convites, mas nada muito aliciante - os agentes fazem
questão que vá lá outra vez, agora, deixar o material. Os convites que
tive não me interessaram muito artisticamente. Quando for para fazer,
quero fazer algo bom, com relevância. Sou vaidosa.
Só a atrai se for um bom papel?
A novela atrai-me, principalmente, em termos financeiros. Mas não
quero fazer uma participação, quero um papel com relevância e que seja
um trabalho a que me possa dedicar com empenho. É uma instituição com
poder, que chega a muitas pessoas e, por isso mesmo, quero fazer uma
coisa direitinha.
Numa entrevista que li afirmava que conheceu o preconceito no Brasil. Foi difícil afirmar-se?
Conheci desde sempre. Apesar de ser muito amada, bem relacionada, nós
vivemos numa bolha e perceber isso é muito curioso. Quando era mais
nova, lembro-me de passear com a minha mãe e ouvir “ó preta, vai para a
tua terra!”. A minha mãe tem uma coisa de realeza silenciosa e de uma
humanidade nessa ligação com o preconceito: perdoa e dá amor, e aprendi
isso, cresci a tentar entender o que era o perdão e que o amor curava
tudo. A minha mãe nunca foi preconceituosa, nunca foi racista. É claro
que, naturalmente, por ser uma miúda preta, periférica, passei por
vários constrangimentos, mas sempre soube defender--me bem. No Brasil,
as convenções do preconceito só mudam um bocadinho porque a maior parte
da população é negra. No mundo todo, só as convenções mudam. Estive na
Alemanha, na Berlinale, o ano passado, e no meio daquilo tudo, do
glamour, de ser muito bem recebida, de estar nomeada com a Isabelle
Hupert, saí do cinema para comprar um sumo e veio um homem atacar-me por
eu ser preta e estar ali. E no mundo artístico, onde nos gabamos de ser
muito sensíveis, de ser muito humanos, foi o lugar onde conheci mais
preconceito.
O cliché dos brandos costumes portugueses é só um disfarce para um racismo latente.
“Brancos” costumes, como diz uma amiga. Algumas coisas estão a mudar,
mas todos os dias consigo surpreender-me pela positiva e pela negativa
em relação ao racismo. Tenho uma esperança e uma desesperança.
Essa ideia que nós, portugueses, estamos sempre a vender de
que não somos racistas faz com que haja tão pouca representatividade
negra em Portugal?
Sem dúvida. Mas acho que agora já se estão a identificar mais e já se
está a falar um pouco mais sobre isso. Eu vejo o racismo em Portugal
mais nas instituições, está entranhado. No setor público, no setor
privado, na política. As políticas são feitas em função de nós e os
outros. Nós, os negros, somos sempre vistos como os outros, os
imigrantes, mesmo quem tenha nascido em Portugal.
Foi preciso esperar até agora para termos uma ministra negra. Acha que isso pode ajudar a mudar as coisas?
Pouco a pouco, vamos mudando. Mas não podemos colocar nela a nossa
esperança. Tem de haver mais diversidade, é com a diversidade que
ganhamos. O racismo está tão entranhado que pode vir a ministra que
vier! É nas pequenas ações que tem de mudar. É eu não me sentir
constrangida no restaurante x ou y por ser negra. Não haver
constrangimento por as pessoas me servirem ou estarem à espera que eu vá
servi-las. Enquanto estiver onde as pessoas querem que esteja, está
tudo bem, mas quando decido o meu lugar, isso deixa as pessoas confusas e
desconfortáveis.
E para a mulher ainda é pior?
Sim, ser mulher, ser preta e ser artista é como se estivesse no final
da cadeia alimentar. Na minha família, tenho primas que seguiram
medicina, a minha irmã seguiu enfermagem, profissões ditas normais,
emigraram para países do centro e do norte da Europa. Eu fui para o sul
do hemisfério, fiz tudo o que não devia fazer para ascender. Foi o
caminho que escolhi e vejo as minhas primas e a minha irmã a dizer-me:
“Tu és muito corajosa!”
Participo em várias celebrações, vou a palestras, a reuniões, mas
sinto que não faço parte de nenhum movimento, vou--me movimentando
dentro dos movimentos. A minha militância é no dia-a-dia. Sempre foi.
Dizia numa entrevista que nos anúncios existe a atriz e existe a atriz negra, e que isso é um absurdo.
Nas solicitações de trabalho, quando escrevem “atriz”, a convenção é
que se trata de uma atriz branca. E comecei a desconstruir isso: sempre
que vejo uma solicitação de atriz, envio o meu material. E já ouvi
respostas como “não estávamos à espera de uma atriz com a sua tez”.
[risos] Parece irrisório, mas é preciso fazer essas coisas. Eu sou
atriz, sei que sou negra, preta, retinta, gengiva preta, carapinha,
cabelo crespo, tudo e mais alguma coisa, mas tenho direito a fazer outro
tipo de papéis. Tenho amplitude para fazer todo o tipo de papéis. Não
me importo de fazer de escrava, mas não vou para a Globo fazer de
escrava para corroborar estereótipos. Quero fazer uma escrava como fiz
no “Joaquim”, uma líder quilombola que enfrenta um homem, que espoleta
no Tiradentes, personagem histórico brasileiro, a vontade de se libertar
daquela sociedade.
Sinto um maior cuidado, mas continuam a cair em estereótipos. Por
exemplo, há uma confusão com a Globo porque uma novela que se estreou
agora é passada na Baía e a maior parte do elenco é branco, sendo a Baía
o estado mais negro fora de África. O meu trabalho tem sido criar
outras dramaturgias, trazer outras narrativas, diversidade, cor.
Em que momento é que Isabel Susana Pinto Martins se transformou em Isabél com acento e Zuaa com dois ás?
[Risos] No momento em que fui a São Paulo e fiz numerologia
cabalística. Achei curioso: o Zua é Susana em kimbundo. No Conservatório
usava Isabel Martins, que achava muito português, não trazia a minha
africanidade. Conhecia uma senhora que se chamava Isabel Martins que
tinha cara de Isabel Martins. [risos] E disse à minha mãe que iria fazer
uma homenagem às minhas avós no nome, a paterna é Isabel e a minha avó
materna é Susana (Zua Mutange).
“As Boas Maneiras” fala da solidão da mulher negra.
Fala sobre a solidão da mulher negra, periférica, lésbica que
encontra uma mulher branca, rica, também solitária, autoritária - fala
de abusos de poder, também - e da relação dessas duas mulheres de mundos
completamente diferentes e da sua transformação. Denuncia o abuso de
poder e é importante haver essa transformação.
Como foi a tua abordagem à personagem, tendo em conta que é um filme de lobisomens, mas também é outra coisa?
Os meus trabalhos são sempre muito intuitivos, não tenho um método
específico. Há coisas que gosto de saber, há coisas que não me importo
de não saber e ir descobrindo. A personagem da Clara é muito diferente
nas duas fases. Na primeira fomos definindo uma Clara misteriosa, mais
inflexível, mais tensa. Na segunda tinha mais liberdade de movimentos.
Na primeira parte há takes em que contávamos os passos.
Ficou logo com vontade de fazer o papel quando leu o guião?
Não. [risos] Fiquei um bocado assustada. Ainda para mais, quem ia fazer o papel da Clara era a Camila Pitanga, eu sou a Isabél Zuaa, que vem lá do Zambujal. Pensei que ia ser um desafio. É um filme de género, é a primeira vez que sou protagonista de um filme maior e o maior desafio de todos foi fazer o sotaque de São Paulo. O filme já esteve em 65 festivais, ganhámos uma série de prémios. Recebo mensagens em que choro, emocionada por ver como o filme pode tocar alguém.
Não. [risos] Fiquei um bocado assustada. Ainda para mais, quem ia fazer o papel da Clara era a Camila Pitanga, eu sou a Isabél Zuaa, que vem lá do Zambujal. Pensei que ia ser um desafio. É um filme de género, é a primeira vez que sou protagonista de um filme maior e o maior desafio de todos foi fazer o sotaque de São Paulo. O filme já esteve em 65 festivais, ganhámos uma série de prémios. Recebo mensagens em que choro, emocionada por ver como o filme pode tocar alguém.
Não sendo adepto de filmes de lobisomens, há uma coisa no
filme que me atraiu: tudo o que aparenta normalidade no filme não é tão
normal assim: a relação entre aquelas duas mulheres, a Clara, uma mulher
negra, a criar sozinha um filho branco, e ninguém questionar isso.
No primeiro contacto com o guião perguntei-me: o que é isto? Depois fui-me apaixonando gradualmente - os diretores foram muito sensíveis, atentos, delicados, respeitosos, sabem ouvir. Eles têm muito carinho pelo trabalho.
No primeiro contacto com o guião perguntei-me: o que é isto? Depois fui-me apaixonando gradualmente - os diretores foram muito sensíveis, atentos, delicados, respeitosos, sabem ouvir. Eles têm muito carinho pelo trabalho.
* Desssombradamente mulher.
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