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IN "O JORNAL ECONÓMICO"
24/05/18
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A eutanásia e
a nossa integridade moral
Falhar-nos a autonomia no momento do fim da vida é trair-nos a vida inteira. Se esta escolha é tão central e absolutamente inviolável para uns não é razoável que o deixasse de o ser para outros.
Na próxima terça-feira, dia 29, vão a plenário da Assembleia da
República, quatro projectos de lei em torno da despenalização da
eutanásia ou, dito com mais precisão, da despenalização da antecipação
voluntária da morte em circunstâncias muito especiais que calam fundo na
sociedade portuguesa, a saber, circunstâncias de sofrimento
insuportável provocado por doença fatal incurável ou lesão irreversível.
É
isto que está em causa, isto que quase todos nós, a partir de uma certa
idade, muitas vezes em silêncio, vamos conhecendo de experiência
própria através do sofrimento de familiares ou de amigos íntimos. Antes
de argumentos e contra-argumentos, é este fundo de experiências vividas
que cada vez mais se inscreve numa sociedade em que vamos vendo viver
mais tempo, com tratamentos médicos a garantir maior longevidade média
contra todas as doenças.
No entanto, e paradoxalmente, viver mais
tempo pode não ser viver sem sofrimento, e mesmo se cuidados paliativos
podem tratar a dor, o sofrimento tem dimensões além da dor, que se ligam
muito mais ao sentido e ao sentir da vida de cada um do que à vida
biológica anónima. Não podemos encarar como normal e natural o
prolongamento das nossas vidas porque a ciência assim o permite e não
encarar como igualmente normal e natural que nos perguntemos até onde
queremos prolongar as nossas vidas, e em que condições aceitamos
prolongá-las.
Posto isto, certamente os argumentos abstractos continuam a ser decisivos.
Primeiro,
o da autonomia. Não respeitaremos a dignidade das nossas vidas e as dos
outros enquanto não reconhecermos a autonomia de quem as vive, ou seja,
a autonomia, dentro de limites socialmente compreensíveis, de cada um
se autodeterminar, de forma madura, em pleno uso das suas capacidades
intelectuais, os aspectos mais importante da sua vida, sem tutelas, nem
paternalismos, ou outras formas de menorização das consciências.
Segundo,
a autonomia da vida joga-se muito sensivelmente na autonomia sobre como
ela acaba. Entre as decisões mais importantes de uma vida, conta-se a
decisão sobre como não se quer que a vida termine. Para alguns, muitos, é
certo que não se quer que a vida termine por recurso à eutanásia.
Por
motivos religiosos por exemplo. Mas, e estão tão no seu direito como
todos os outros que não querem que as suas vidas terminem de outras
formas, por exemplo num sofrimento insuportável e incurável.
Não
se poder ter uma palavra sobre esta escolha — como não se quer que a
vida termine — seria uma restrição do direito pleno à vida. Não no
sentido frívolo de um direito a fazer dela o que se quiser, como uma
posse de que nos pudéssemos desfazer, mas no sentido de uma vida que se
deve poder ser por inteiro, o que inclui por inteiro o seu fim.
Falhar-nos a autonomia no momento do fim da vida é trair-nos a vida
inteira. Se esta escolha é tão central e absolutamente inviolável para
uns não é razoável que o deixasse de o ser para outros.
Agora que
os projectos lei chegam a discussão parlamentar, há uma responsabilidade
de todas as partes contribuírem para encontrar uma solução que consiga
acomodar o princípio da autonomia, uma solução que, no entanto, não
falhe nenhuma das condicionantes que têm de ser atendidas com toda a
seriedade. Uma legislação deve ser aprovada, mas a que for aprovada deve
garantir que o diagnóstico de lesão definitiva ou doença incurável e
fatal é um juízo médico sério e não simplesmente do paciente.
Além
disso, o reconhecimento de sofrimento duradouro e insuportável deve ser
um juízo que não deve ser estabelecido sem uma apreciação concreta do
caso singular, não podendo resumir-se à enunciação de um diagnóstico
médico. Não menos importante, a assistência médica deve garantir que a
formação da vontade da pessoa que faz o pedido de antecipação da morte
não está a ser condicionada ou pressionada por factores externos.
Devem
distinguir-se e tipificar três actos de assistência médica com
valorações éticas distintas, mas também estabelecer entre eles relações
lógicas importantes.
Primeiro, a eutanásia passiva, através da
acção médica de interrupção de um tratamento, justifica-se contra a
distanásia, que prolonga artificial e inaceitavelmente a vida através do
uso desproporcional e obstinado de tratamentos. Mas, por seu turno, a
eutanásia activa deve ser despenalizada em circunstâncias idênticas às
que tornariam permissível um acto de eutanásia passiva, mas em que não
existe um tratamento que possa ser interrompido.
Naturalmente, a
perspectiva dos médicos (que podem sempre fazer valer-se da objecção de
consciência) passa a estar muito mais em causa, mas é importante não
perder de vista que da perspectiva do paciente nada mais está em causa
do que a existência ou inexistência de um tratamento que pudesse ser
interrompido, facto em si mesmo moralmente neutro e que, por isso,
origina arbitrariedade caso seja moralmente relevado. Ou seja, a
eutanásia activa só deve ser aceitável se não for possível um acto de
eutanásia passiva, mas encontradas essas circunstâncias não se devem
constituir novas objecções éticas.
Finalmente, o suicídio
medicamente assistido deve ser apenas despenalizado para a parte médica
em circunstâncias idênticas às que devem tornar o acto de eutanásia não
punível. E um procedimento de eutanásia, activa ou passiva, só deve ser
aceitável se o suicídio assistido não puder ter lugar. Tanto quanto
possível a autonomia deve solidarizar uma vontade formada com a
capacidade de a efectivar, não a contornando.
Frequentes vezes vem
ao debate público o argumento de que a Constituição é incompatível com a
despenalização da eutanásia. A meu ver sem razão. Diz o Art.º 24 que a
vida é inviolável e o seguinte que a integridade moral e física das
pessoas também o é. Não só a física, mas também a moral, pois são ambas
que fazem a integridade de uma pessoa. Não são muitas mais as evocações
na Constituição da ideia de inviolabilidade. Repetem-se apenas com a
domicílio e a correspondência (Art.º 34) e com a liberdade de
consciência, de religião e de culto (Art.º 41).
“Inviolabilidade”
é, pois, uma palavra usada com uma gravidade constitucional
inquestionável e sempre relacionada com a garantia da protecção da
autonomia da pessoa. À luz disto, não violar a vida é um imperativo
constitucional que não se pode dispor a ir ao ponto de violar a
integridade moral da vida humana. Ora, são precisamente circunstâncias
de sofrimento imposto atentatórias da integridade moral da vida humana, e
nenhumas outras, aquilo que estes projectos de lei que irão a plenário
para a semana querem, com justiça, repudiar.
*Filósofo, professor na Universidade da Beira Interior
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
24/05/18
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