Uma “história americana”
No dia seguinte, a tragédia de Parkland passou a ser mais uma “histórica americana”, em que o lado insuportável vai desaparecendo entre as velas acesas.
1. Houve dois momentos distintos na mais recente
tragédia americana, daquelas que não temos sequer a capacidade de
entender. No próprio dia em que aconteceu, no início da tarde de
quarta-feira, a grande maioria das pessoas, entre jornalistas,
comentadores, analistas ou políticos que passaram pelas televisões por
cabo já não tinham nada para dizer. Dizer o quê? Pela enésima vez? Como
se soubessem de antemão que, no dia seguinte, nada de significativo
mudaria. Em 2018, já houve 18 ataques com armas de fogo em escolas
americanas. Este foi apenas um dos mais mortíferos. Percebe-se que não
haja grande coisa a acrescentar. E há palavras tão gastas que é quase
imoral repeti-las. “Os nossos pensamentos e as nossas orações...” Obama
conseguiu endurecer algumas regras que dão acesso à compra de armas,
incluindo as de calibre militar. Mas não o suficiente para impedir um
jovem de 19 anos de comprar legalmente uma arma de guerra
semi-automática, com as respectivas munições. Tinha a maioria no Senado
mas nem todos os democratas votaram favoravelmente. A realidade pouco
mudou. A América é o país do mundo onde há mais armas na posse de
civis, incluindo gente educada, fiel ao Partido Democrata, absolutamente
normal a quem entregaríamos os nossos filhos, sem uma justificação
precisa, a não ser o “just in case” ou a ideia de que as coisas na
América são mesmo assim. Com 5 por cento da população mundial, os
EUA dispõem de 35 a 50 por cento das armas na posse de civis à escala
global. Na América é mais fácil a um jovem comprar uma destas armas do
que uma cerveja ou um maço de tabaco. Por mais que levemos em conta as
especificidades deste grande país capaz do melhor e do pior, perceber
por que razão isto é normal ultrapassa a capacidade de entendimento de
um europeu. Há ainda quem tente perguntar por que motivo a América é a
única democracia desenvolvida em que isto acontece. Com pouco sucesso. A
maioria dos americanos não se interessa especialmente pelo que acontece
no resto do mundo.
2. No dia seguinte, a tragédia de Parkland passou a
ser mais uma “histórica americana”. Com os seus heróis e os seus
vilões, os seus “first responders”, a dar conta do que fizeram com o
pormenor de uma série policial americana, que nada acrescenta, a não ser
preencher as lacunas de uma narrativa que deixa de ser real e sufocante
para passar a ser uma história em que o sofrimento é superado com
bravura (como se isso fosse possível), em que o lado insuportável vai
desaparecendo entre as velas acesas iluminando rostos jovens com
lágrimas ou entre abraços sentidos, prolongados, apertados, desviando a
crueza insuportável dos factos.
3. Donald Trump,
na sua primeira reacção via twitter não resistiu às palavras que foram
perdendo sentido. “As minhas orações e os meus pensamentos vão para
aqueles que....”. No dia seguinte falou ao país para prometer acção.
“Top priority”. Empatia? Zero. Sem nunca pronunciar a palavra “armas”, o
que é verdadeiramente notável. Apontando o dedo a “doentes mentais” que
não são devidamente identificados. Há também duas Américas nesta
história. Aquela que continua a insistir em que o mal não está nas armas
mas nas pessoas que as utilizam. E aquela, minoritária, que se revolta,
que fica sem palavras, que procura alguma coisa que valha a pena fazer,
quase só para dizer que se fez alguma coisa. E há, naturalmente, as
instituições que defendem o direito absoluto a possuir e a usar uma arma
de fogo, à frente das quais está a poderosíssima National Rifle
Association (NRA) com os seus inesgotáveis milhões, destinados a fazer e
desfazer candidaturas segundo um único critério: a defesa ou a oposição
ao direito, de preferência ilimitado, a possuir armas de fogo. Donald
Trump foi um dos grandes beneficiários da sua “generosidade” durante a
campanha eleitoral, apenas ultrapassada pelos gastos destinados a
enfraquecer a sua principal rival. Não se espera que nada disto vá mudar
brevemente. Os sectores mais radicais acusam o FBI de perder tempo a
reunir provas contra um eventual conluio entre Trump e Moscovo (o
Departamento de Justiça acaba de indiciar 13 cidadãos russos, acusados
de interferência nas eleições), em vez de seguir as pistas deixadas pelo
atirador de Parkland nas redes sociais. O FBI já veio dizer que o seu
escritório de Miami não seguiu como devia essas pistas. Espera-se que
rolem cabeças. Há senadores republicanos que defendem que os professores
deviam andar armados. Toda a gente reclama por mais segurança nas
escolas, numa lógica de quanto mais armas melhor. E há também alunos que
exigem a restrição do acesso a armas, mas esses ainda não votam. A
Segunda Emenda da Constituição é invocada em último recurso: “Uma bem
regulada Milícia, sendo necessária para a segurança de um Estado livre,
mesmo que o direito do povo a possuir e a usar armas não possa ser
infringido.” Esta “história americana” continuará a ser contada nos
próximos dias. As vidas maravilhosas dos jovens que não deviam ter
morrido, com idades compreendidas entre os 14 e os 17 anos, vão sendo
contadas com palavras igualmente maravilhosas, numa derradeira tentativa
de redenção, capaz de ajudar a suportar a dor. E a história de Nikolas
Cruz, o autor confesso do massacre, vai sendo reconstruída a cada minuto
que passa, tentando fazer dele um caso isolado, que obviamente não é. É
a história de um jovem americano que perdeu os pais demasiado cedo, que
tinha um comportamento belicoso e uma adoração por armas, que foi
expulso por mau comportamento da mesma escola que agora atacou, que
usava as redes sociais para intimidar e para proclamar as suas
intenções. Fazer dele um simples “doente mental” é dar um passo
demasiado grande. Quantos como ele, vivendo em famílias com problemas e
dificuldades, animados pela fantasia do poder que a posse de uma arma
lhes dá, haverá na América? Muitos, certamente. O que faz deles
potenciais criminosos é apenas o acesso fácil a uma arma de guerra ou a
uma outra qualquer. Nikolas Cruz planeou a sua “vingança” para que
conseguisse causar o maior número de vítimas. Abandonou o local
misturando-se entre os que fugiam. O único factor decisivo para ter
feito o que fez foi ter podido comprar uma arma de guerra legalmente.
4. “Os políticos não sentem o mesmo que nós
sentimos?” A mais inteligente das perguntas, feita por uma mãe que
passou horas terríveis até saber a sorte da sua filha e que confessa não
saber o que dizer ao filho mais novo, que não quer ir para a escola
porque tem medo. Na terça-feira passada fui almoçar com uma das minhas
netas à escola pública que frequentam, um privilégio concedido aos
familiares. Não poderia haver cenário mais tranquilizador, entre jardins
impecáveis e ruas tranquilas. Na quinta-feira, fui almoçar com outra
das minhas netas, que frequenta a mesma escola, sem conseguir tirar do
pensamento o que poderia acontecer também ali.
IN "PÚBLICO"
18/02/18
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