20/02/2018

TERESA DE SOUSA

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Uma “história americana”

No dia seguinte, a tragédia de Parkland passou a ser mais uma “histórica americana”, em que o lado insuportável vai desaparecendo entre as velas acesas.

1. Houve dois momentos distintos na mais recente tragédia americana, daquelas que não temos sequer a capacidade de entender. No próprio dia em que aconteceu, no início da tarde de  quarta-feira, a grande maioria das pessoas, entre jornalistas, comentadores, analistas ou políticos que passaram pelas televisões por cabo já não tinham nada para dizer. Dizer o quê? Pela enésima vez? Como se soubessem de antemão que, no dia seguinte, nada de significativo mudaria.  Em 2018, já houve 18 ataques com armas de fogo em escolas americanas. Este foi apenas um dos mais mortíferos. Percebe-se que não haja grande coisa a acrescentar. E há palavras tão gastas que é quase imoral repeti-las. “Os nossos pensamentos e as nossas orações...” Obama conseguiu endurecer algumas regras que dão acesso à compra de armas, incluindo as de calibre militar. Mas não o suficiente para impedir um jovem de 19 anos de comprar legalmente uma arma de guerra semi-automática, com as respectivas munições. Tinha a maioria no Senado mas nem todos os democratas votaram favoravelmente. A realidade  pouco mudou. A América é o país  do mundo onde há mais armas na posse de civis, incluindo gente educada, fiel ao Partido Democrata, absolutamente normal a quem entregaríamos os nossos filhos, sem uma justificação precisa, a não ser o “just in case” ou a ideia de que as coisas na América são mesmo assim. Com 5 por cento da população mundial, os EUA dispõem de 35 a 50 por cento das armas na posse de civis à escala global. Na América é mais fácil a um jovem comprar uma destas armas do que uma cerveja ou um maço de tabaco.  Por mais que levemos em conta as especificidades deste grande país capaz do melhor e do pior,  perceber por que razão isto é normal ultrapassa a capacidade de entendimento de um europeu. Há ainda quem tente perguntar por que motivo a América é a única democracia desenvolvida em que isto acontece. Com pouco sucesso. A maioria dos americanos não se interessa especialmente pelo que acontece no resto do mundo.


2. No dia seguinte,  a tragédia de Parkland passou a ser mais uma “histórica americana”. Com os seus heróis e os seus vilões, os seus “first responders”, a dar conta do que fizeram com o  pormenor de uma série policial americana, que nada acrescenta, a não ser preencher as lacunas de uma narrativa que deixa de ser real e sufocante para passar a ser uma história em que o sofrimento é superado com bravura (como se isso fosse possível), em que o lado insuportável vai desaparecendo entre as velas acesas iluminando rostos jovens com lágrimas ou entre abraços sentidos, prolongados, apertados, desviando a crueza insuportável dos factos.

3. Donald Trump, na sua primeira reacção via twitter não resistiu às palavras que foram perdendo sentido. “As minhas orações e os meus pensamentos vão para aqueles que....”. No dia seguinte falou ao país para prometer acção. “Top priority”. Empatia? Zero. Sem nunca pronunciar a palavra “armas”, o que é verdadeiramente notável. Apontando o dedo a “doentes mentais” que não são devidamente identificados. Há também duas Américas nesta história. Aquela que continua a insistir em que o mal não está nas armas mas nas pessoas que as utilizam. E aquela, minoritária, que se revolta, que fica sem palavras, que procura alguma coisa que valha a pena fazer, quase só para dizer que se fez alguma coisa. E há, naturalmente, as instituições que defendem o direito absoluto a possuir e a usar uma arma de fogo, à frente das quais está a poderosíssima National Rifle Association (NRA) com os seus inesgotáveis milhões, destinados a fazer e desfazer candidaturas segundo um único critério: a defesa ou a oposição ao direito, de preferência ilimitado, a possuir armas de fogo. Donald Trump foi um dos grandes beneficiários da sua “generosidade” durante a campanha eleitoral, apenas ultrapassada pelos gastos destinados a enfraquecer a sua principal rival. Não se espera que nada disto vá mudar brevemente. Os sectores mais radicais acusam o FBI de perder tempo a reunir provas contra um eventual conluio entre Trump e Moscovo (o Departamento de Justiça acaba de indiciar 13 cidadãos russos, acusados de interferência nas eleições), em vez de seguir as pistas deixadas pelo atirador de Parkland nas redes sociais. O FBI já veio dizer que o seu escritório de Miami não seguiu como devia essas pistas. Espera-se que rolem cabeças. Há senadores republicanos que defendem que os professores deviam andar armados.  Toda a gente reclama por mais segurança nas escolas, numa lógica de quanto mais armas melhor. E há também alunos que exigem a restrição do acesso a armas, mas esses ainda não votam. A Segunda Emenda da Constituição é invocada em último recurso: “Uma bem regulada Milícia, sendo necessária para a segurança de um Estado livre, mesmo que o direito do povo a possuir e a usar armas não possa ser infringido.” Esta “história americana” continuará a ser contada nos próximos dias. As vidas maravilhosas dos jovens que não deviam ter morrido, com idades compreendidas entre os 14 e os 17 anos, vão sendo contadas com palavras igualmente maravilhosas, numa derradeira tentativa de redenção, capaz de ajudar a suportar a dor. E a história de Nikolas Cruz, o autor confesso do massacre, vai sendo reconstruída a cada minuto que passa, tentando fazer dele um caso isolado, que obviamente não é. É a história de um jovem americano que perdeu os pais demasiado cedo, que tinha um comportamento belicoso e uma adoração por armas, que foi expulso por mau comportamento da mesma escola que agora atacou, que usava as redes sociais para intimidar e para proclamar as suas intenções. Fazer dele um simples “doente mental” é dar um passo demasiado grande. Quantos como ele, vivendo em famílias com problemas e dificuldades, animados pela fantasia do poder que a posse de uma arma lhes dá, haverá na América? Muitos, certamente. O que faz deles potenciais criminosos é apenas o acesso fácil a uma arma de guerra ou a uma outra qualquer. Nikolas Cruz planeou a sua “vingança” para que conseguisse causar o maior número de vítimas. Abandonou o local misturando-se entre os que fugiam. O único factor decisivo para ter feito o que fez foi ter podido comprar uma arma de guerra legalmente.

4. “Os políticos não sentem o mesmo que nós sentimos?” A mais inteligente das perguntas, feita por uma mãe que passou horas terríveis até saber a sorte da sua filha e que confessa não saber o que dizer ao filho mais novo, que não quer ir para a escola porque tem medo. Na terça-feira passada fui almoçar com uma das minhas netas à escola pública que frequentam, um privilégio concedido aos familiares. Não poderia haver cenário mais tranquilizador, entre jardins impecáveis e ruas tranquilas. Na quinta-feira, fui almoçar com outra  das minhas netas, que frequenta a mesma escola, sem conseguir tirar do pensamento o que poderia acontecer também ali.

IN "PÚBLICO"
18/02/18

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