Desorientações com o Me Too
Quando pensarem o que torna possível os casos repetidos a
resposta é o ambiente de atirar lama às mulheres que fazem denúncias, de
lhes chamar cínicas e hipócritas. Outro nome para isto é cumplicidade
Eu ia escrever sobre Lula. Mas, em vez disso, e porque cronistas
masculinos fizeram o favor de explicar como o movimento Me Too é uma das
maiores calamidades da humanidade, vou ter de escrever sobre o
exibicionista da Praça de Londres.
Confesso, nunca vi este
exibicionista. Mas ele tinha fama entre as minhas relações, muitas
residentes em Alvalade. Em boa verdade não sei se tinha poiso fixo na
Praça de Londres, se se alargava até à Guerra Junqueiro ou à João XXI. É
possível que eu apenas tenha fixado a Praça de Londres por uma amiga me
ter contado que lá o viu.
Mas também não interessa, porque o que
quero lembrar é que aquando da existência do exibicionista da Praça de
Londres, este tipo de homens era execrado. Então (aí há vinte, vinte e
cinco anos), considerava-se um homem mostrar o pénis a uma mulher, fora
de um contexto relacional ou sexual que o justificasse, uma agressão e
uma imposição inaceitável, apesar de não haver contacto físico. Tais
homens eram vistos como desalmados ou casos psiquiátricos.
Pois
bem, tanta fineza de espírito aparentemente hoje é inexistente.
Lamenta-se em jornais e redes sociais a injustiça que é oferecer tanta
censura social aos homens inocentes que se masturbam em frente às
mulheres que deles dependem profissionalmente ou que violam aqui e ali.
Pobrezinhos, que ficaram sem trabalho. Malditas mulheres, que não sabem
ficar caladas perante estas tão edificantes e saudáveis interações entre
os sexos. Quem é que as mulheres pensam que são para julgarem que têm
direito e a liberdade de contar as suas histórias de vida? Quem as
tornou assim tão excitáveis? Porque persistem em agitar a repugnância
das pessoas decentes contra os crimes sexuais, em vez de continuarem a
deixar estes assuntos para os sistemas judiciais, que tinham a boa
prática de enxovalhar as vítimas? Desta forma, poucas se submetiam ao
enxovalho e todos vivíamos sossegados.
Maldito puritanismo que
quer impedir um homem de mostrar o seu glorioso órgão a parceiras e
colegas de trabalho ou a forçar sexo oral. Onde é que o mundo vai acabar
se continuamos a censurar socialmente comportamentos inocentes como
este?
Deixem-me lá apresentar mais gente puritana (i.e., pessoas
que levam a mal que lhes seja exigido sexo à força ou para facilitar a
vida profissional). Tudo agora nos quarentas. Tudo gente que eu conheço
(apenas uma delas só do facebook), cujas histórias já sabia,
recapituladas e autorizadas em poucas horas.
Há a rapariga de 17
anos, a entrar em casa para ir buscar o comando da garagem depois de um
cinema, que foi seguida por um homem desconhecido, negro, que a tentou
obrigar a fazer-lhe sexo oral, com ameaças, violência e, claro, pénis à
solta pelo meio. Há a miúda do segundo ciclo, ademais portadora de um
apelido conhecido e politicamente influente (nem isso a protegeu), que
teve a mão de um padre do colégio colocada por baixo da saia mas em cima
do rabo.
Há o miúdo de oito anos, de uma família bem que vê como
maior afronta se alguém lhes dá dois beijinhos, que foi abusado por um
primo durante umas férias. (Não é só o sexo feminino, como de resto o Me
Too mostrou, que sofre agressões sexuais). Há a miúda de sete anos, na
zona de Coimbra, agora a viver nos Estados Unidos, ex-docente
universitária, que foi tocada onde não devia, durante vários minutos,
por um vizinho que a apanhou quando ia ter com a avó ao campo. Este
vizinho com frequência se despia e mostrava às crianças que apanhava e
tornou-se conhecido entre elas por isso, até chegar aos ouvidos dos
adultos. Aí foi ameaçado e parou. Há a miúda de seis anos que foi a casa
de uma vizinha amiga e o tio desta, com quem vivia, sentou-a ao colo e
beijou-a na boca. Mais tarde contou o que se passara à amiga, que lhe
confidenciou que o tio lhe fazia pior constantemente.
Há a
professora da Universidade da Madeira, cujo presidente do departamento,
num encontro à saída do ginásio, lhe perguntou onde iriam ambos a seguir
e a informou que era muito bom a pôr sabonete nas costas. Outra vez,
sozinhos no gabinete, disse que era muito bom a montar. Em ocasião
semelhante, informou que estava a pensar em elefantes, com as suas
trombas. Não havendo reciprocidade dela, a partir daí as cadeiras que
lhe eram atribuídas mudaram constantemente e, quando pediu dispensa de
serviço para fazer doutoramento, não foi dada, tendo o senhor do
sabonete voto de qualidade; ao invés, atafulharam-lhe os horários com
novas cadeiras para preparar. E fê-la saber que era o que acontecia
quando se seguem as regras.
Não é uma lista exaustiva do que já me
foi contado. Uma amiga disse-me que não queria reviver o caso de
assédio. Houve quem claramente dissesse que preferia não ler nada sobre o
que viveu. Sei que há casos que não conheço.
Mas vamos lá ignorar
esta gente toda, mais as que publicamente têm acusado homens da
indústria de cinema, dos media americanos e, até, um proprietário de restaurantes. Vamos fingir que as denúncias são de piropos ou tentativas de sedução – quando são de apalpões de chefes, exigências ou imposições sexuais para manutenção de emprego, abusos sexuais violentos e violações.
Vamos delirar e supor que o que se passa numa relação laboral entre
alguém com poder e uma subordinada é tão inconsequente quanto uma
tentativa de engate numa discoteca (ou noutro lado).
Neguemos a
realidade e proclamemos que as denúncias são só berrarias imaginárias –
quando muitos dos denunciados já as reconheceram, outros aceitaram o
despedimento calados e só uma pequeníssima parte nega e ameaça com
processos judiciais. Chamemos mentirosas a todas as mulheres, porque
para cada homem há várias contando casos, mostrando que os homens
propensos a abusos e assédios se especializam, reincidem,
fazem disso vida. Inventemos que as mulheres deram em achar que um
apalpão tem a mesma gravidade que uma violação – aparentemente reclamar
que as mulheres não têm de aturar na profissão chefes a enviar mensagens
explícitas e mostrar o pénis é equivaler a uma violação. Dá-se como
manifestação de bom senso uma carta de francesas que inclui mulheres que
acham uma violação uma experiência eventualmente agradável e lamentam nunca terem sido violadas (leu bem).
Vamos
criar o fantasma de que o mulherio trata todos os homens como
agressores – quando as feministas mais retintas informam que apenas uma pequena percentagem
de homens agride sexualmente. Liberais (atchim) amofinam perante o
conceito de liberdade das mulheres de apenas participarem em interações
sexuais por vontade própria, em vez de por violência ou coação.
O
sem fim de mentiras sobre este tema não dá para descrever. O objetivo,
contudo, é claro. Calar as denúncias de forma a manter a impunidade.
O médico da seleção de ginástica americana que foi agora condenado abusou de centenas de miúdas, tendo havido queixas desde 1997. Ninguém ligou – as mulheres mentem e querem atenção, não é? Foi nomeado por estes dias um procurador especial
para averiguar tamanha negligência. Só depois do movimento Me Too (esse
nojo) as ginastas mais conhecidas reconheceram também terem sido
abusadas – o caso havia começado com poucas denúncias.
Em Espanha, o homem que violou e matou uma miúda de dezanove anos já tinha violado a cunhada. Esta queixou-se e ninguém lhe deu crédito.
Quando
pensarem o que torna possível estes casos repetidos, saibam a resposta:
é o ambiente de atirar lama às mulheres que fazem denúncias, de lhes
chamar cínicas e hipócritas, que se tem visto nas redes sociais e nos
jornais. Outro nome para isto é cumplicidade.
IN "OBSERVADOR"
31/01/18
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