Da Igreja Universal da
Neutralidade de Género
Se Neil Armstrong pisasse a lua hoje, ele nunca podia ter dito o que disse. «Um pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a humanidade». Oh… seria imediatamente alvo de censura pela patrulha do politicamente correto. A frase não é inclusiva e não reflete a neutralidade de género. Ridículo? Não. É assunto sério.
Há dias no Canadá, o primeiro-ministro Justin Trudeau corrigiu uma
jovem aconselhando-a a não usar a palavra humanidade. «We like to say
‘peoplekind’, not ‘humankind’, because it’s more inclusive» - a
fidelidade ao original é importante para perceber a profundidade do
pensamento justiniano. Na cruzada contra a segregação de género e
opressão idiomática da língua cantada por Céline Dion, o mesmo Trudeau
patrocinou a alteração do hino nacional: a nova versão, assética, apaga a
linha «em todos os seus filhos» e troca-a por «em todos nós».
A reboque de uma corrente ideológica de seriedade duvidosa, a luta
indispensável pela igualdade de direitos e pela liberdade das minorias
foi resgatada por um grupo de fanáticos que sonham com a imposição de um
novo falar. Uma volta rápida pelo ocidente mostra como línguas que
evoluíram organicamente ao longo de séculos estão a ser manipuladas pela
engenharia idiomática, com a complacência de poderes políticos reféns
dos minoritários monopólios da indignação.
Em Londres, a autoridade de transportes achou que há quem se ofenda
com a sua secular saudação aos passageiros. O educado «bom dia senhoras e
senhores» foi trocado por um muito neutro e muito na moda «olá a
todos».
Do outro lado do Canal da Mancha, o movimento ‘Écriture Inclusive’,
na saudosa esteira revolucionária, promete guilhotinar o pendor
«machista» e «falocêntrico» da língua francesa e reivindica a adoção do
«género neutro». A Igreja da Suécia decretou a neutralidade de todas as
referências de género nas homilias e em alguns textos sagrados Deus já
não é ‘Pai’.
Voltando ao Canadá, o poder político manipulou a língua criando
pronomes alternativos, ditos transgénero - them, zir/hir. E, pior do que
isso, consagrou em letra de lei que a não conformidade dos cidadãos a
esta nova gramática neutral configura discurso de ódio.
Parece que há muita gente que se ofende com o facto de ‘ele’ e ‘ela’
verbalizarem aquilo a que a ciência confirma como «traços biológicos
objetivos binários». Mas quem é que mede o nível de ofensa que é
estritamente individual e altamente subjetivo: grupos de pressão?
Parlamentos? Governos? Correntes ideológicas? É papel de um governo
legislar com base em perceções individuais ou grupais e impô-las à
sociedade?
Quando se dá ao sentimento de ofensa o caráter de Lei, as sociedades
têm um problema. Mas quando essa mesma lei enfia no saco dos delitos de
ódio a manifestação de ideias ou opiniões alternativas, então é a
democracia que tem um problema.
Não há muito de admirável neste mundo novo. Embora o objetivo pareça
ser sempre a promoção da tolerância, o resultado (não) intencional da
imposição de modos de expressão é a diminuição da liberdade.
A natureza é competitiva. A democracia é confrontacional. A
confrontação faz-se dentro de deveres e direitos estabelecidos.
Costumávamos chamar-lhe liberdade de expressão.
A história mostra que inventar palavras ou dar novos usos às que
sobreviveram ao teste do tempo é uma regra dos manuais totalitários.
Isso devia ser um alerta para a defesa da democracia contra os
charlatães da Igreja Universal da Neutralidade de Género. Eles/Elas
estão, laboriosamente, a conduzir a discussão para onde menos se joga a
igualdade e a integração e a tolerância. Estão a levar-nos para onde
menos encontramos os direitos das mulheres ou as liberdades individuais.
Quaisquer que elas sejam.
IN "SOL"
23/02/18
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