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ESTA SEMANA NO
"SOL"
O lado negro dos videojogos
A Organização Mundial de Saúde reconheceu esta dependência. Psicólogos explicam quando pode ser necessário intervir e ir à causa do problema.
Henrique (nome fictício) jogava todos os dias pelo menos 10 horas.
World of Warcraft e League of Legends, jogos online em que o tempo
passado em competição é determinante para a pontuação e evolução da
personagem, eram uma parte significativa do quotidiano do então
estudante de engenharia. Hoje com 26 anos, Henrique não tem problemas em
dizer que estava viciado, mas não o considera um problema grave. No seu
meio, era algo normal. «Muitos dos meus colegas também jogavam a maior
parte do tempo e os colegas de casa tinham uma rotina semelhante»,
lembra.
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Quando percebeu que estava a ter mais notas, Henrique decidiu cortar.
Passou a concentrar-se em projetos universitários e, aos poucos, a vida
real foi levando a melhor sobre o hábito de jogar. Hoje está emigrado na
Alemanha a trabalhar e joga «às vezes», conta. Mas nem todos as
relações prolongadas com os videojogos acabam assim. Em dezembro, a
Organização Mundial de Saúde classificou o vício de videojogos como um
distúrbio psiquiátrico. A bíblia da psiquiatria mundial, o Manual de
Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM, na sigla em
inglês), ainda não o reconhece, mas a próxima edição poderá ser
diferente.
Uma questão de consciência
Apesar da falta de estudos e números concretos, a dependência de
videojogos tem ganho crescente atenção por parte da sociedade. Quem o
diz é João Nuno Faria, psicólogo da PIN – Progresso Infantil, para quem a
«dependência não está a aumentar, mas cada vez há mais consciência» das
famílias. A opinião é partilhada pela psicóloga Sónia Soares Coelho: «A
perceção desta perturbação como perniciosa tem vindo a mudar», diz. Com
essa mudança, aumentaram os pedidos de ajuda.
O ‘vício’ dos videojogos distingue-se das adições a substâncias
químicas, como a cocaína e a heroína, por ser um fenómeno comportamental
e não físico. Patrícia Câmara, psicóloga, defende que pode olhar-se
para esta dependência como «uma identidade patológica independente» ou
como «um sintoma, um mal estar de algo mais abrangente». Para Soares
Coelho, as adições «estão quase sempre assentes numa necessidade de
preenchimento de vazios», representando a consequência e não a causa
original. «Como qualquer outro vício, as pessoas passam a centrar a sua
vida – ou pseudo-vida – em torno da dependência», acrescenta Patrícia
Câmara.
Para a OMS, o fenómeno pode ser caracterizado por um «fraco controle
sobre o jogo, aumentando a prioridade dado ao jogo em relação a outras
atividades (...) e continuação ou escalada do jogo apesar das
consequências negativas». Da última vez que a Associação Americana de
Psiquiatria se pronunciou sobre o tema, na quinta edição do DSM,
publicada em 2013, não quis ser taxativa, mas encorajou o aprofundamento
do estudo para se apurar se deveria ser incluído como perturbação
psiquiátrica num futuro próximo.
Sinais de risco
Perceber onde está a fronteira entre o normal e o patológico pode ser
difícil. Pedro Hubert, psicólogo do Instituto de Apoio ao Jogo,
explica que «não é apenas a quantidade de horas» que permite o
diagnóstico, só se associada a outros critérios.
A experiência clínica leva-o a afirmar que a maioria das pessoas que
sofre com este problema são jovens universitários, por ser um período de
mudanças, mais liberdade mas também mais exigente. Mas também surgem
casos de dependência em pessoas mais velhas, sublinha.
Entre os jovens, são comportamentos que se verificam em situações em
que vivem em casa dos pais, têm pouca autonomia, problemas de ansiedade
social e de interação com os outros.
Já João Nuno Faria refere que, nos casos que tem seguido, consegue
diferenciar dois grupos de indivíduos: os que se encontram na linha do
espetro de autismo e os «puros», como lhes chama. Estes últimos são
casos mais raros, por a sua consulta se focar sobretudo em questões de
desenvolvimento infantil. O psicólogo caracteriza os viciados «puros» em
videojogos como pessoas com características próximas das dos
toxicodependentes: manipuladoras que omitem o tempo que passam a jogar e
que conseguem «viver durante um período significativo de tempo em
abstinência, enquanto pensam constantemente em formas de o voltarem a
fazer e nas estratégias que podem aplicar no próprio jogo».
Um fenómeno social
Para os jovens que assentem que tiveram um problema com os
videojogos, há outras nuances. Henrique partilha que, apesar de sentir
que desperdiçava muito tempo a jogar, durante algum tempo não viu
problema nisso porque tinha muitos colegas na faculdade que faziam o
mesmo. Conseguiu parar sozinho ainda durante o curso.
Já Miguel (nome fictício), também começou a jogar mais durante a
faculdade. «Naquela altura acordava entre as 11h e as 14h, ia algumas
aulas e o resto do tempo passava a jogar, excetuando certos eventos
sociais, não muito comuns», lembra. Foi o trabalho que pôs travão ao
vício.
Numa coisa concordam: acreditam que existe um estigma em torno de
quem, simplesmente, gosta de passar mais tempo a jogar. Para Henrique, a
própria ideia de estar viciado é um pouco subjetiva, discordando da
ideia de que quem jogar muito não pode ser produtivo. No seu caso, o que
fazia era despachar as tarefas mais depressa para ir jogar.
Miguel rejeita que o jogo compensasse alguma tendência para o
isolamento. «Muitas pessoas veem o jogar videojogos como uma coisa
antissocial e isoladora, mas não é», diz. Prova disso, acrescenta, é ter
feito amigos nos videojogos e muitos amigos da ‘vida real’ usarem as
mesmas plataformas. «Não vejo diferença entre os jogos e outros
hobbies».
Pedro Hubert, sem comentar estes casos em concreto, reconhece que muitos
doentes recusam usar o termo de viciado, contrapondo que são grandes
jogadores, com estatuto e bem posicionados nos rankings, contribuindo
para um sentimento de pertença à comunidade dos ‘gamers’. «Têm um
sentimento de pertença muito forte não só entre os jogadores de equipa
mas na irmandade», explica. «Faltar a um jogo por terem de jantar é
considerado alta traição à pátria». E este sentimento de pertença não se
repete com a família ou na escola.
O tratamento
Para Patrícia Câmara, importa não diabolizar os videojogos, pois
podem ter efeitos benéficos em algumas situações. «Permitem a pessoas
com maior dificuldade em relacionamentos sociais estabelecerem espaços
intermédios enquanto não são capazes de interagir».
Quando a vida do jogador passa a estar centrada no virtual e não da
realidade, pode então ser necessária uma intervenção sobre esse
comportamento, diz a psicóloga.
Os especialistas convergem na importância do tratamento e em ir à
procura das causas que levam à dependência, mas divergem na questão da
proibição. «O objetivo, seja no jogo ou no consumo de substâncias, é
sempre regular o consumo e nunca a proibição, pois já sabemos que isso
não resulta», afirma Hubert. Já Faria defende que, nos tais casos puros,
é preciso optar-se pela retirada total, para que se consiga trabalhar
as competências psicossociais do indivíduo.
Apesar das diferenças, ambos concordam na necessidade de encontrar
atividades alternativas que substituam o jogo. Câmara acrescenta ainda
que essa busca deve ser acompanhada pelo profissional de saúde, sob
risco de o paciente se tornar também dependente da alternativa
encontrada. «Aprender a jogar a vida e os seus desafios é a única forma
de largar o vício de um jogo», conclui Câmara.
* Joga-se a caminho da solidão.
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