20/01/2018

FRANCISCO LOUÇÃ

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Toca a vender a alma ao diabo

Sem querer desmerecer a primazia do conselho de Ferreira Leite, repito com ela: Dr. Rio, venda mesmo a alma ao diabo, que nesse comércio espiritual é de aproveitar o momento em que a cotação vai alta. É a lei do mercado, percebe?

A recomendação é de Ferreira Leite para o presidente-eleito Rui Rio e já deu que falar: desunhe-se, se preciso for venda a alma ao diabo para correr com a esquerda do estribo do gabinete do Dr. Costa, se não mesmo da sua mesa, sabe-se lá onde essa gente se instalou. A bem dizer, Rio já tinha dito isso, sem ter que invocar o inconveniente diabo, que tem entre os laranjas a má fama de nunca chegar a horas. A tomar por certo o que correu o risco de anunciar durante a sua campanha, o objetivo de Rio é mesmo esse. Perdendo dentro de dois anos, vai já adiantando que a moral e os bons costumes recomendam que dê uma mão ao estouvado do Dr. Costa para o aliviar das más influências.

Imagino os sorrisos de auto-condescendência no Bloco e no PCP. Afinal de contas, se o intuito da direita ao renovar-se é condensar a sua política no objectivo estratégico de se aliar ao PS no temor de que, preso a acordos com a esquerda, aquele partido amanse os seus compromissos europeus e outros avulsos, a começar pelo patronato que ama as leis laborais troikistas e pelos interesses que estremecem quando se fazem contas às rendas, então as esquerdas não poderiam exibir melhor certificado de competência e vitória. Nunca a esquerda foi tão evidentemente definida como o eixo da política pela direita. É aliás cândido que Rio tenha feito dessa subserviência ao PS um mote de campanha, e é não menos arrebatador que os incentivos que recebe, já de vitória no bolso, lhe peçam que não saia dessa sua linha de rumo.

Claro que para o PSD isso é suicidário. Votem-em-mim-para-eu-apoiar-o-PS é uma frivolidade, para os eleitores mais crédulos mais vale então votar no PS. Isso já se verificou em minúscula escala na última eleição, noutro quadrante, e não deixa de ser curioso que o PSD, à direita, acredite que se reforça com uma política que anuncia o seu próprio fracasso como alternativa. Mas é assim mesmo e a realidade impõe-se contra os cálculos: para a direita económica, o único desígnio presente é dar a maioria absoluta ao PS, sozinho ou em bloco central, na esperança de o trazer ao redil da saudosa tradição liberal, os mercados a tomarem conta da segurança social e da saúde, já para não esquecer os transportes de Lisboa e Porto que estavam prometidos a quem de direito. O conforto de alma, o fim de sobressaltos e da incerteza sobre a relação de forças, que os ministros são tão volúveis, tudo advoga esse bloco central, para uma direita que prefere perder por cem a perder por mil.

Acresce que esta linha diabista tem muitos entusiastas. Para a esquerda, é o cenário de sonho: a haver incerteza sobre se o PS se alia a Rio, nem é preciso fazer campanha sobre a necessidade de uma posição forte para que Portugal não retorne à pasmaceira da austeridade. Para o PS também não é mau, os que acham que o bloco central é uma segunda pele ficam aliviados e os que acham que o PSD deve ser reduzido a uma periferia política ficam animados. Para o CDS, interessante, fica com algum espaço, mesmo se a catadura de Rio lhe pode ganhar alguma “classe média”.

Fica um problema, que não é de somenos. Tal estratégia tem um preço de regime. O bloco central é uma coisa nos anos oitenta, saídos da revolução e com aflições constitucionais, e outra nos tempos de crise dos partidos quarentões. Assim, o único bloco central que os poderes económicos pretendem é mesmo a maioria absoluta do PS para que o tempo volte para trás. Tanto pior para as direitas.
 
Por isso, sem querer desmerecer a primazia do conselho de Ferreira Leite, repito com ela: Dr. Rio, venda mesmo a alma ao diabo, que nesse comércio espiritual é de aproveitar o momento em que a cotação vai alta. É a lei do mercado, percebe?

IN "PÚBLICO"
17/01/18

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