O cliente é parvo
e nunca tem razão
Existe um sem número de empresas que nos fazem pagar valores
inconcebíveis por bens e serviços, usurpam-nos o dinheiro, põem-nos de
castigo ou desprezam-nos mesmo quando foram elas que se portaram mal.
Existe um sem número de empresas que nos fazem pagar valores
inconcebíveis por bens e serviços que podem ser adquiridos online,
usurpam o nosso dinheiro e depois põem-nos de castigo ou desprezam-nos
mesmo quando foram elas que se portaram mal. Organizações cuja cultura
de empresa parece ser “haja o que houver, o cliente é parvo nunca tem
razão!”.
Cada vez há mais companhias destas no mercado e o
problema é que não só nos enganam e confundem, como fazem germinar à sua
volta uma cultura daninha de não-protesto. As pessoas sentem-se
enganadas, defraudadas e até vigarizadas, mas acabam por encolher os
ombros, desistindo de protestar quando percebem que as suas reclamações,
mesmo cheias de razões, são remetidas para endereços de email de onde
chegam, desfasadas, respostas-padrão escritas por gente que nunca dá a
cara nem atende o telefone. Aliás, nunca há contactos de telefone nestas
empresas, para evitar este confronto de voz.
Na realidade há
muitas organizações que maltratam os seus clientes e abusam da sua
confiança, defraudando as suas expectativas. Empresas online a operar em
múltiplos países, a cobrar valores muito acima daquilo que seria
legítimo e até a sacar dinheiro dinheiro aos mais incautos. Há estas e
há as outras, que fornecem serviços a preços justos ou até low cost,
mas quando alguma coisa corre menos bem, nunca estão lá para amparar os
seus clientes, para os compreender e compensar, fidelizando-os à sua
marca. Dou dois exemplos: o Viagogo, site criado para comprar bilhetes
de concertos, e a Ryanair.
Em lado nenhum está escrito que o
Viagogo pode cobrar mais 100€ do que o valor nominal que aparece
impresso nos bilhetes que vende online e remete por mail, mas na
realidade cobra. Pior, fica-nos com o dinheiro e não faz devoluções
porque argumenta que é mesmo assim.
Na semana passada aconteceu
comigo, mas pode acontecer com qualquer um e, também por isso, escrevo.
Para que haja cada vez menos incautos a alimentar os vícios de empresas
como estas.
Estavamos a 3 dias do concerto da Carminho e eu estava fora
de Lisboa. Recorri ao computador, escrevi no google “comprar bilhetes
concerto Carminho” e apareceu em primeiro lugar o site Viagogo que está
criteriosamente feito para nos confundir. Aliás este site sobrepôe-se a
qualquer ticketline e afins, e isso só se consegue pagando ou usando
expedientes nem sempre completamente transparentes ou justos.
O
site aparece cheio de alertas e motores de busca a rodarem, a dar uma
ilusão de pesquisa mundial, com caixas a avisarem que os bilhetes estão a
esgotar e a ser vertiginosamente vendidos. Queria 2 bilhetes e
precisava que fossem lugares vizinhos, para nos podermos sentar lado a
lado, pois ia com a minha mãe, que tem 82 anos e, como é óbvio, não dava
para ficarmos cada uma na sua ponta do Pavilhão Atlântico.
Fui
informada de que naquele preciso instante ainda havia 2 bilhetes a 24€,
12 a 53€ e 18 a 61€. Tentei os de 24€, mas mal cliquei apareceu uma
faixa encarnada a dizer que tinham acabado de ser vendidos. Tipo leilão
acelerado, em que ficamos cheios de urgência para licitar, com medo de
perdermos as peças que queremos a todo o custo comprar. Voltei atrás e
verifiquei então que havia os tais 12 bilhetes a 53€. Carotes, mas
enfim, tratava-se de um presente de anos. Lá cliquei para os obter e
começou mais um countdown urgente que avisava: “estes bilhetes vão estar
reservados para si apenas durante breves minutos”. E o relógio em
desconto de segundos e minutos sempre visível e enervante no canto
superior direito do ecran.
Comprar online exige tempo e atenção,
para não darmos ordens nem clicarmos em sítios errados, pois todos
sabemos que uma vez pagos os bens ou serviços, não há volta a dar porque
nunca mais ninguém nos devolve o que porventura pagámos em excesso.
Como também não está lá ninguém a quem possamos fazer perguntas, temos
que ter olho vivo e pé ligeiro para não nos deixarmos enganar, mas
também não perdermos a possibilidade de comprar o que precisamos de
comprar.
Assim sendo fui dando os passos que me eram pedidos, com o
relógio sempre a descontar e um sem número de alertas a dispararem no
ecran, dando conta de que os bilhetes estavam a esgotar. Em cada clique
tinha um novo aviso e parecia uma cena de doidos: quanto mais avançava,
mais me parecia que ia perder também aqueles dois bilhetes.
Depois
de escrever tudo o que é preciso e passar para o lado de lá a morada e
contactos, mais os dados do cartão de crédito, o tempo também estava
prestes a esgotar porque vá-se lá saber porquê, alguns passos demoram
mais que outros e nem sempre os cliques eram imediatos. Deve ser de
propósito, mas nós, os incautos, só percebemos isso depois.
Abreviando
a história, quando fiz o último clic, já com tudo pago e sem poder
voltar atrás, apareceu no ecran a bonita soma de 148€. Cento e quarenta e
oito euros? Como assim, se os bilhetes custavam 53€ cada um? A comissão
do site Viagogo é de 42€? E isso é possível? E não são denunciados?
Onde estão as autoridades reguladoras das actividades económicas online?
A quem podemos recorrer para nos queixarmos de motores de busca que nos
levam para sites enganadores? Qualquer método de venda é aceitável?
Enquanto o comércio offline está altamente controlado, as compras online
parecem estar em roda livre.
Fiquei mal disposta, claro, mas o
pior veio depois: os bilhetes que chegaram via mail para imprimir tinham
o valor nominal de 24€. Os tais que tinham acabado de ser vendidos, mas
afinal sobraram para mim ao dobro do preço. Fora a escandalosa
comissão, note-se. Percebi imediatamente que iamos ver o concerto de
muito longe, naqueles lugares em que mal se percebe a figura dos
músicos, ainda por cima em lugares pagos a preços vip, como se
estivéssemos na primeira fila da plateia.
Reclamei, protestei,
escrevi e disse tudo o que tinha a dizer, mas os senhores que anotam o
descontentamento perante os procedimentos Viagogo não se ralaram nada e
escreveram de volta a dizer que neste site os bilhetes não têm preço
definido. Ou antes, cada um estabelece o valor que quer. Bonito serviço.
Teoricamente podem ser mais baratos, dizem eles, mas também podem ser
muito mais caros. Eu sei. Aliás, só não sei de ninguém que tenha
conseguido comprar esses tais bilhetes muito mais baratos.
Senti-me
parva e sem razão, claro. Enganada e sem alento para manter um diálogo
de surdos. Nunca mais volto a comprar nada através deste site, mas
pergunto-me quantos parvos como eu caem todos os dias nesta armadilha?
A
Ryanair é outro caso de maus tratos aos clientes. Há mais empresas
destas, imperialistas, absolutistas, que impõem regras absurdas nos
países onde operam, mas agora falo de outra má experiência recente,
ainda que já tenham passado uns meses. O meu pai ainda estava vivo e
íamos ao Porto em família. Compramos bilhetes de avião com antecedência e
correu tudo bem até à véspera, dia em que fui assaltada no Metro e
fiquei sem carteira nem documentos. Perto da saída da estação de Metro
havia uma esquadra de Polícia e lá fui dar conta da ocorrência.
Passaram-me um papel a certificar o que tinha acontecido e garantiram-me
que poderia viajar de avião, dado que era um voo nacional.
Na
manhã seguinte comparecemos no balcão da Ryanair e começou uma novela
interminável. Os papéis da Polícia estavam claros e bem redigidos, a PSP
é uma autoridade idónea, eu estava acompanhada dos meus pais e tinha
comigo fotocópias do meu cartão de cidadão que, por acaso, tinha em
casa. Ou seja, tinha uma declaração que certificava o assalto, tinha
fotocópias do meu cartão e tinha os meus pais comigo, cujos nomes e
apelidos coincidiam milimetricamente com os da minha filição, que
constam no meu cartão de identificação. Estava em Lisboa e queria
embarcar para o Porto, mas os senhores da Ryanair alegaram regras
internacionais e outras coisas que tais para nos impedirem de viajar.
Depois de uma longa e erosiva conversa ao balcão, o homem manteve-se irredutível.
– Não vão e não voam!
– Mas temos todas as provas e documentos necessários, está escrito que se tiver testemunhas da minha identidade posso embarcar, tenho os meus dois pais comigo e não me deixam apanhar o avião?
– Não. São ordens e são regras.
– Estamos em Portugal, para me deslocar de cidade para cidade ninguém me pede identificação, esta é a regra no meu país.
– Pois, mas a Ryanair tem regras internacionais.
– Para voos nacionais?
– Mas temos todas as provas e documentos necessários, está escrito que se tiver testemunhas da minha identidade posso embarcar, tenho os meus dois pais comigo e não me deixam apanhar o avião?
– Não. São ordens e são regras.
– Estamos em Portugal, para me deslocar de cidade para cidade ninguém me pede identificação, esta é a regra no meu país.
– Pois, mas a Ryanair tem regras internacionais.
– Para voos nacionais?
Fez silêncio. Não tinha resposta e deve ter pensado que lhe podia acontecer o mesmo. Espero.
– Então quero o meu dinheiro de volta, porque senão é um duplo
roubo. Ontem roubaram-me os documentos e hoje a Ryanair fica com a
totalidade do dinheiro que paguei por 3 bilhetes de ida e volta, pois os
meus pais não estão em condições de viajar sozinhos.
De nada
adiantou argumentar. Falar com funcionários destas empresas, quando
estão em modo ‘resistência passiva-agressiva’ é pior que esbarrar contra
muros intransponíveis. Pedi o livro de reclamações (para quê? ainda
hoje me pergunto), redigi com fúria e precisão, entreguei o livro e saí
dali para a Gare do Oriente, onde compramos três bilhetes de comboio sem
que o funcionário levantasse os olhos para saber quem eu era e, muito
menos, de quem era filha.
Ryanair também nunca mais, livra!
IN "OBSERVADOR"
05/12/17
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