20/12/2017

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HOJE  NO 
"OBSERVADOR"
A bitcoin não vai longe 
(e o holandês ING dá 6 razões)

A moeda digital não cairá para zero, mas no "pós-bolha" vai tornar-se um instrumento de "nicho", para obcecados com privacidade e com tecnologias e, também, para criminosos. É a opinião do banco ING.

Faça o teste. É provável que tenha um ou, mesmo, dois canais de informação financeira na sua televisão em casa. Além da Bloomberg, talvez tenha a CNBC, duas norte-americanas. E mesmo que não tenha o hábito ver estes canais, não fique surpreendido, por estes dias, se em vez de estarem a falar de ações, petróleo, taxas de juro e política económica estiverem a falar de bitcoin e das outras moedas digitais (mas, sobretudo, da bitcoin). Este é um sinal claro de que a subida vertiginosa da cotação da bitcoin está a ser acompanhada com interesse por parte das pessoas (os telespectadores) e por estes canais financeiros. Mas a “febre” vai passar e, ainda que a tecnologia — a blockchain — seja promissora, a bitcoin não irá longe e voltará a ser o “instrumento de nicho” que foi nos seus primeiros anos. Esta é, pelo menos, a opinião de um economista do gigante bancário holandês ING.
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Geeks (entusiastas das novas tecnologias), pessoas obcecadas com a privacidade, pessoas com medo de episódios de hiper-inflação (frequentes na História mundial e mesmo na actualidade) e pessoas interessadas em contornar os bancos “por razões ideológicas ou criminosas”. A bitcoin tem boas probabilidades de continuar a ser fascinante — ou, no mínimo, útil — para estas pessoas. Mas Teunis Brosens, economista sénior do holandês ING, aposta que, no futuro, a moeda digital não irá muito mais longe do que isso e irá voltar a ser nada mais do que um “instrumento de nicho”.

Apesar de ser evidente que o investimento (em rigor, a aplicação de dinheiro) em bitcoin há muito começou a ser feita por aqueles que se podem considerar investidores de retalho, com pequenos montantes, Teunis Brosens acredita que essas decisões de investimento estão a ser tomadas maioritariamente como especulação e não pela utilização da moeda digital como forma de pagamento (agora ou no futuro minimamente próximo). Além da especulação, “a bitcoin tem pouco a oferecer ao público geral e voltará, provavelmente, a ser um instrumento de nicho para um grupo restrito de pessoas”.

Não é, de todo, fácil prever qual é o futuro da bitcoin ou, sequer, atribuir-lhe um valor potencial. Mas, num relatório enviado aos clientes, o ING decide “juntar-se à multidão de analistas que estão a observar características típicas de uma bolha” e dá seis razões que, por si ou no seu conjunto, tornam provável que a bitcoin não venha a ser mais do uma “bolha” especulativa e fracasse como meio de pagamentos mainstream. Saiba quais são.

1- A falta de regulação. Trunfo ou calcanhar de Aquiles?
Para já, pelo menos à superfície, a posição oficial é laissez-faire, laissez-passer. Mas os governos não andam distraídos e, à medida que o valor da bitcoin subiu, começaram a surgir declarações públicas que mostram que pode estar iminente algum tipo de regulação de uma moeda digital que tem, como atrativo principal, o facto de não ser regulada. O último a falar nisto foi o ministro das Finanças de França, Bruno Le Maire, que quer ver esta questão discutida na próxima reunião do G20, em abril.

Governos como o do Reino Unido e de outros países europeus estão preocupados com o eventual uso da bitcoin para atividades criminosas e evasão fiscal, segundo o The Guardian. Paradoxalmente, este é um problema que, a confirmar-se, não começou só quando a moeda digital disparou mais de 1.000% em poucos meses — a sua utilização para atividades ilícitas é antiga e bem documentada, embora os seus defensores considerem que reduzir a bitcoin a isso não é justo. Podem estar contados os dias do anonimato (que, na realidade, não é pleno) nas transações de bitcoin.

“Para que a bitcoin cresça e amadureça, precisa de ser trazida para o centro do espaço regulado, em vez de existir nas franjas como atualmente acontece”, diz o ING. Claro que isso irá implicar, com toda a certeza, que “as bolsas de bitcoin e outros prestadores de serviços tenham de promover práticas adequadas de segurança e cumprimento das boas práticas de conhecer o seu cliente”, para evitar a utilização das moedas digitais para financiar crimes, branqueamento de capitais e, até, terrorismo.

2- Bitcoin não tem intermediários? Não será bem assim
Não há um banco central, não há bancos, não há empresas de cartões de crédito — “ninguém se mete no meio, entre ti e a pessoa ou entidade a quem queres pagar alguma coisa ou transferir dinheiro”. Este é um dos argumentos mais comuns dos entusiastas das moedas digitais como a bitcoin. Mas, na realidade, também não é bem assim. As bolsas de bitcoins cobram comissões significativas nas transações e conversões envolvendo moedas digitais e um negócio que floresceu nos últimos anos é a criação de “carteiras” virtuais onde as pessoas guardam os registos sobre as bitcoins que detêm, o que é o mesmo que dizer “onde guardam as bitcoins que têm“.

O ING recorda um estudo que propõe que um quinto das bitcoins em circulação não estão, nesta altura, realmente em circulação. Perderam-se os registos, discos rígidos queimaram, houve erros nas transferências, pessoas morreram e os registos e passwords desapareceram para sempre. Enquanto intermediários financeiros, um dos papéis dos bancos é gerir este tipo de situações, prevenir o roubo e certificar-se que as pessoas não perdem o acesso ao dinheiro (seu ou de alguém de quem são herdeiros).

A realidade é que, como nota o banco holandês, a maior parte das pessoas — excetuando os tais geeks e criminosos — não querem ter o trabalho de guardar os seus registos de bitcoins em papéis em cofres, nem querem correr riscos potencialmente devastadores. Portanto, o ING conclui que imaginar um futuro para a bitcoin em que realmente não existem intermediários pode não ser totalmente realista. Daí que, se houver intermediários, haverá (mais) comissões — portanto, em que é que isso é diferente da banca tradicional?

3- Qual é, realmente, o potencial da bitcoin?
Um exemplo prático: vamos ao restaurante, almoçamos, no final pagamos com cartão de débito. O terminal de pagamentos vai validar, junto do banco, se temos dinheiro suficiente na conta para pagar a despesa. Pelo menos em teoria, com a bitcoin não é bem assim. “Quando pago com bitcoin, o terminal do retalhista não se limita a processar a minha transação, mas tem de participar na validação de todas as transações que estão a acontecer naquele momento, e registá-las”, explica o ING, acrescentando que isto cria uma grande quantidade de tráfego.
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É claro que podem surgir intermediários que ajudem a processar estas transações, de forma a simplificar o processo. “Mas isso leva-nos, de novo, para o ponto anterior”, ironiza Teunis Brosens. Neste momento, segundo a informação do ING, o ecossistema da bitcoin é capaz de processar cerca de 7 transações por segundo — “para que a bitcoin venha a desempenhar um papel importante como sistema de pagamentos, a capacidade de gestão de transações tem de ser 100 vezes, ou mesmo 1000 vezes, superior a isto“.

Já existem relatos de atrasos no processamento de transações com bitcoins — várias horas à espera de ver uma transação concluída. Há serviços (pagos) que ajudam a que as transações se façam mais rapidamente, basicamente saltando para a “frente da fila”, mas esses custos só se justificam em montantes mais elevados, não para pagar uma refeição num restaurante.

4- Bitcoin. Valiosa sim, mas muito volátil
Este é um dos pontos mais importantes, diz o ING. Os defensores da bitcoin argumentam que à medida que a moeda digital se afirmar e se tornar mais mainstream, a volatilidade vai diminuir. E isso é crucial, porque “ter uma moeda que hoje nos compra um grande latte e, no dia seguinte, só nos compra uma bica, não é muito conveniente”. Para que a bitcoin funcione como meio de pagamento, “precisa de ser estável”, diz Teunis Brosens.

O exemplo do grande latte e da bica é ilustrativo, mas este é um problema ainda maior quando pensamos no mundo empresarial: “Uma moeda que tenha uma valorização ou desvalorização de 10% pode ser a diferença entre um ótimo lucro e um grave prejuízo, num piscar de olhos”, diz o ING, lembrando que a bitcoin tem registado enorme volatilidade ao longo dos anos, muito mais do que as moedas convencionais e do que o ouro (um ativo com o qual a bitcoin é frequentemente comparado).

“A bitcoin continua a ser uma forma de dinheiro que tem oferta fixa, na sua própria blockchain, sem que haja um banco central a gerir a quantidade de moeda e a estabilidade dos pares cambiais. Isto torna-a intrinsecamente propensa a ser volátil, defende o economista do ING.

5-Sabe quanta energia se gasta a explorar novas bitcoins?
A forma como a bitcoin foi desenhada estabelecia que “achar” novas moedas seria cada vez mais difícil — no sentido de mais moroso, mais complexo e a precisar de cada vez maior poder computacional. Foi por isso que, a certa altura, houve gente a instalar supercomputadores em países ou regiões com eletricidade mais barata, para estarem 24 horas sobre 24 horas a trabalhar no código e a tentar extrair bitcoins.

Para os céticos da bitcoin, a questão energética será uma das mais prováveis razões para o colapso da moeda digital. Neste momento, estima-se que está a consumir-se eletricidade a um ritmo anualizado de 32 terawatt-hora em eletricidade com computadores ligados a tentar “extrair” bitcoin. Isso é muito ou pouco? Em Portugal inteiro, consomem-se por ano cerca de 47 terawatt-hora, segundo dados da Pordata relativos a 2015.

Na opinião do ING, este tipo de consumos energéticos são “indesejáveis e insustentáveis, desperdiçando eletricidade que podia ser utilizada em coisas mais úteis“.

6-Falta de organização leva a espontaneidade ou a balbúrdia?
Mais uma vez, o ING salienta que a falta de uma centralidade, uma entidade gestora, na bitcoin é, ao mesmo tempo, o grande atrativo e o calcanhar de Aquiles. É ténue a linha que separa a liberdade e a espontaneidade da balbúrdia e o ING acredita que a bitcoin vai acabar por sucumbir — ainda que outras criptomoedas possam ter mais sucesso neste campo.
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Na bitcoin alguém definiu as regras de como novas moedas eram extraídas, mas falta quem garanta não só que o sistema funciona sem falhas mas, também, que é possível enquadrar inovações no sistema da bitcoin. Um exemplo prático: o que vai acontecer quando a revolucionária computação quântica for capaz de “quebrar” a criptografia da bitcoin? O que acontece ao “nosso dinheiro”?

Outro fator crucial é a aparente simplicidade que existe em copiar a tecnologia da bitcoin, não existindo quaisquer regimes de exclusividade nesta matéria. A moeda digital vem recomendada como dinheiro que nunca será inflacionado por nenhum governo ou banco central (porque o limite máximo é de 21 milhões de moedas), mas a realidade é que a proliferação de moedas digitais e de estirpes da bitcoin abonam pouco a favor dessa noção de que é algo limitado e impossível de replicar.

O ING admite que algumas moedas digitais — poucas — podem sair vitoriosas mas isso faz com que, no fundo, o que está em causa neste momento é uma aposta naquela (ou naquelas) que vai ter sucesso. Como na bolha das dotcom, a maior parte das empresas tecnológicas colapsaram, mas quem investiu na Amazon ou na Google certamente não ficou dececionado. Será que a bitcoin, que vale neste momento 17 mil dólares, vai ser a Google ou a Amazon, ou será que vai ser a Pets.com?

* Uma peça jornalística bem  esclarecedora.

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