Um outro olhar sobre
as provas de aferição
A “hecatombe” dos resultados nas provas deve-se sobretudo à desvalorização que o discurso oficial lhes conferiu.
“Jornalismo é publicar o que alguém não quer ver publicado. Tudo o mais são relações públicas”
George Orwell, citado por Ray Kerrison no New York Post de 29.01.99
A 5 de Outubro, por ironia do destino Dia Mundial do Professor, a
comunicação social disse, implicitamente, que os professores do ensino
básico eram incompetentes. Veja-se, por todos (e foram tantos), o título
e o lead do PÚBLICO, a esse propósito: “Mais de 80% dos alunos
do ensino básico derraparam nas provas de aferição. Face aos
resultados, o Ministério da Educação anuncia que vai reforçar a formação
contínua dos professores do 1.º, 2.º e 3.º ciclos de escolaridade.”
De
todas as variáveis que influenciam os resultados escolares, entre
outras o contexto socioeconómico e cultural de origem dos alunos, a
organização familiar vigente, os factores organizacionais de natureza
política e administrativa (estrutura curricular, programas, meios e
condições de trabalho), o secretário de Estado João Costa apontou o dedo
à qualidade de uma classe profissional envelhecida, sistematicamente
negligenciada e destratada, que em grande parte está impedida de fruir
de vida familiar normal. Lesto, puxou pela cabeça e encontrou a solução:
mais formação.
Acontece que o “susto” e a “hecatombe”, qualificativos que vi
escritos para referir os resultados das provas de aferição, poderão
dever-se, em considerável parte, ao desconhecimento do senhor secretário
de Estado sobre essas provas, que foram há anos usadas e abandonadas
por inúteis, e à desvalorização que desde o início o discurso oficial
lhes conferiu. Com efeito, que crédito lhe podemos dar agora, ao afirmar
que “ninguém pode ficar tranquilo”, quando o ministro da pasta disse
antes, aos alunos, pais e professores, sobre o mesmo tema, que “ninguém
tinha que se inquietar”? Depois de o discurso oficial ter exaustivamente
sublinhado que estas provas “não contavam para nada”, será que a
luminosa mente de João Costa admite, ao menos como mera hipótese, que a
reiterada falta de resposta a muitos itens se possa explicar pela falta
de empenhamento dos alunos em provas que não levaram a sério, porque
“não contavam para nada”, como lhes foi dito?
João Costa foi
rápido a denunciar a falta de qualidade das aprendizagens dos alunos
sujeitos a provas sem fiabilidade a que, impropriamente, chamou de
aferição (provas no 2.º, 5.º e 8.º anos, anos intermédios, são de
avaliação de acompanhamento e não de aferição que, naturalmente, só pode
acontecer no final dos ciclos de aprendizagem). Mas foi omisso a
interpretar o choque frontal do seu discurso catastrofista com as
conclusões dos dois mais reconhecidos instrumentos internacionais de
avaliação dos resultados dos alunos: PISA e TIMMS.
Nos resultados
do PISA de 2015, os últimos apurados, os alunos portugueses superaram,
pela primeira vez em 15 anos, a média da OCDE nas três áreas
classificadas (Ciências, Leitura e Matemática). Desde o início do
programa, os alunos portugueses subiram 42 pontos em Ciências, 28 em
Leitura e 38 em Matemática, sempre de modo consistente e progressivo.
Mais ainda: Portugal foi dos poucos países que conseguiu,
cumulativamente, aumentar a percentagem dos alunos do escalão mais
elevado e diminuir a percentagem dos alunos do escalão inferior.
Na
edição do TIMMS de 2015, e no que toca à classificação dos alunos do
4.º ano em Ciências e Matemática, ficámos na 13.ª posição em 56 países, à
frente dos Estados Unidos da América, Dinamarca, Finlândia, Holanda,
Alemanha, Suécia, Canadá, Itália, Espanha e França.
Tudo visto e
sendo certo que o corpo docente é o mesmo, talvez possamos considerar
que o secretário de Estado João Costa devia encolher o dedo indicador
que apontou aos professores e devia analisar, outrossim, a vacuidade do
seu discurso e a inutilidade das teorias com que inferniza escolas,
alunos e professores, arregimentados na flexibilidade curricular das
“interdisciplinaridades”, “transversalidades” e “aprendizagens
significativas”.
* Santana Castilho tem 43 anos de exercício docente, dos quais os últimos
27 no ensino superior, ensinando organização e gestão do ensino a
futuros professores.
Foi membro do VIII Governo Constitucional, presidente da Escola Superior
de Educação de Santarém e do seu conselho científico e presidente do
Instituto Politécnico de Setúbal.
Foi consultor do Banco Mundial, da União Europeia e da UNESCO, em
projectos educacionais de âmbito internacional.
Foi responsável por vários projectos internacionais de investigação
educacional.
No exercício de actividade liberal, foi consultor e formador de quadros
de grandes empresas nacionais e multinacionais, no domínio da gestão
estratégica e da avaliação e gestão do desempenho.
Foi director de várias revistas educacionais e tem vasta obra publicada,
em artigos e livros.
IN "PÚBLICO"
18/10/17
.
Sem comentários:
Enviar um comentário