25/10/2017

PAULA COSME PINTO

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“O adultério da mulher  é um
atentado à honra do homem”

Um resumo breve: uma mulher mantém um relação extraconjugal por dois meses. Termina-a por vontade própria e o amante começa a persegui-la e a ameaçar mostrar fotos íntimas ao marido caso ela não mantenha relações sexuais com ele. Ela não cede. O amante conta ao marido. O casal separa-se. O ex-marido, despeitado e deprimido, ameaça e insulta continuadamente a mulher após a separação. Ex-amante e ex-marido, embora sem grande premeditação, juntam-se para se vingarem. Encurralam a mulher e agridem-na. Esta consegue fugir e apresenta queixa. O que tem a Justiça a considerar sobre isto? Que a imoralidade da vítima é que levou a que isto acontecesse. Sim, em Portugal, em 2017.

O acórdão supostamente proferido pelo Tribunal da Relação do Porto – e digo aparentemente porque até agora ainda ninguém o desmentiu – foi partilhado na íntegra pela plataforma Capazes e pode ser lido aqui. Mas para vos poupar a leitura total, deixo-vos algumas passagens, agradecendo desde já que não se use o cliché da descontextualização para menosprezar alguns dos excertos que aqui vou reproduzir. Desde a Bíblia, às leis de países que punem mulheres adúlteras com lapidação e ao velhinho Código Penal de 1886, parece que vale tudo para tentar culpar a mulher vítima de agressão, tentando-se assim justificar o injustificável:

- “Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão.”

- “Este caso está longe de ter a gravidade com que, geralmente, se apresentam os casos de maus tratos no quadro da violência doméstica. Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”

- “Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse”

- “A conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”

- “Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”

Há algo que não podemos esquecer ao ler isto: os juízes - e os Tribunais – quando falam, falam em representação do Estado. Um Estado, aproveito para relembrar, que por cá é laico. Este tipo de argumentação com base religiosa e repleta de estereótipos de género, por mais que seja dada com a justificação em jeito de “a título de exemplo”, é inaceitável e, quer-me parecer, inconstitucional. Está carregada de moralismos, de juízos de valor, de interpretações de comportamento de cada um dos intervenientes totalmente enviesadas, com o género da vítima e dos agressores a ter um papel decisivo na forma com se olha para o caso. Como se o facto de se ser homem ou mulher tornasse a situação mais ou menos grave. Tudo isto nos leva ao caminho da normalização da violência, principalmente a que acontecesse em contexto de relação de intimidade. E essa normalização é talvez a estrada mais perigosa de todas, principalmente porque parece nunca mais ter fim.

Continuamos a desvalorizar a violência doméstica em Portugal 
Ainda me lembro de há uns meses também ter acontecido uma situação do género em Évora, quando o Tribunal da Relação anulou uma pena de violência doméstica usando este tipo de considerações: “Não é, pois, do mero facto de o arguido consumir bebidas alcoólicas, ou de tomar uma ou outra atitude incorreta para com a ofendida (por exemplo, ir ‘tirar dinheiro’ da carteira desta)” ou o facto de numa discussão “ter agarrado o pescoço desta com uma mão, ou de, perante a recusa sexual repetida (e assumida) da ofendida, o arguido pensar, e verbalizar, que a mesma tinha amantes” que se pode considerar que houve maus-tratos à vítima.

Por mais que os números anuais sejam assustadores, ainda desvalorizamos a violência doméstica em Portugal. Continuamo-nos a esquecer que a violência não passa exclusivamente pelas agressões físicas e a achar que estes crimes só são realmente crimes quando existe uma tentativa de homicídio ou quando a desgraça fatal já aconteceu. E mesmo nesses casos, ainda muita gente se põe a ponderar até que ponto a vítima não teve alguma culpa pela situação. Continuamos a tentar justificar as agressões quando devíamos, acima de tudo, questionar porque é que estas acontecem repetidamente, e em larga escala, com o mesmo padrão de géneros no que toca a vítimas e agressores. Se queremos analisar comportamentos por géneros, comecemos por este, por exemplo.

Continuamos a considerar que homens e mulheres têm obrigações e direitos distintos, já para não falar daquilo que é esperado enquanto conduta e comportamento social e familiar de cada um. Continuamos a achar que no toca à liberdade sexual, por exemplo, há diferenças entre o que é aceitável para homens e para mulheres. Continuamos a achar que o adultério feminino é mais grave, imoral, condenável e passível de vingança justificada do que o masculino. Continuamos a achar que as mulheres ainda se querem “belas, recatada e do lar”. Está na altura de tirarmos a cabeça debaixo da areia e enfrentarmos a nossa realidade, que este acórdão do Tribunal da Relação do Porto tão bem corrobora: ainda vivemos sob a herança histórica de uma mentalidade patriarcal, misógina e, consequentemente, discriminatória. Com tribunais e demais órgãos de soberania a darem o mau exemplo. 

Secretamente, confesso que continuo à espera que surja um desmentido a dizer que isto não passa de uma cabala da Internet. Que os nossos juízes – homens e mulheres, porque isto do sexismo não é exclusivo a um género – não contribuem para cenários de injustiça e discriminação como este, tendo por base a manutenção da dignidade e da honra do sexo masculino enquanto valor fundamental, e que pode ser ameaçado pelo comportamento feminino. Mas ou muito me engano ou isso não vai acontecer. Veremos.

IN "EXPRESSO"
25/10/17

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