“O adultério da mulher é um
atentado à honra do homem”
Um resumo breve: uma mulher mantém
um relação extraconjugal por dois meses. Termina-a por vontade própria e
o amante começa a persegui-la e a ameaçar mostrar fotos íntimas ao
marido caso ela não mantenha relações sexuais com ele. Ela não cede. O
amante conta ao marido. O casal separa-se. O ex-marido, despeitado e
deprimido, ameaça e insulta continuadamente a mulher após a separação.
Ex-amante e ex-marido, embora sem grande premeditação, juntam-se para se
vingarem. Encurralam a mulher e agridem-na. Esta consegue fugir e
apresenta queixa. O que tem a Justiça a considerar sobre isto? Que a
imoralidade da vítima é que levou a que isto acontecesse. Sim, em
Portugal, em 2017.
O acórdão supostamente proferido pelo Tribunal
da Relação do Porto – e digo aparentemente porque até agora ainda
ninguém o desmentiu – foi partilhado na íntegra pela plataforma Capazes e
pode ser lido aqui.
Mas para vos poupar a leitura total, deixo-vos algumas passagens,
agradecendo desde já que não se use o cliché da descontextualização para
menosprezar alguns dos excertos que aqui vou reproduzir. Desde a
Bíblia, às leis de países que punem mulheres adúlteras com lapidação e
ao velhinho Código Penal de 1886, parece que vale tudo para tentar
culpar a mulher vítima de agressão, tentando-se assim justificar o
injustificável:
- “Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão.”
-
“Este caso está longe de ter a gravidade com que, geralmente, se
apresentam os casos de maus tratos no quadro da violência doméstica. Por
outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério
praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo
atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”
-
“Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a
morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de
1886, artigo 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem
que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse”
-
“A conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela
assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e
dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo
de lapidação até à morte”
- “Com estas
referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é
uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são
as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por
isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído,
vexado e humilhado pela mulher”
Há algo que não
podemos esquecer ao ler isto: os juízes - e os Tribunais – quando
falam, falam em representação do Estado. Um Estado, aproveito para
relembrar, que por cá é laico. Este tipo de argumentação com base
religiosa e repleta de estereótipos de género, por mais que seja dada
com a justificação em jeito de “a título de exemplo”, é inaceitável e,
quer-me parecer, inconstitucional. Está carregada de moralismos, de
juízos de valor, de interpretações de comportamento de cada um dos
intervenientes totalmente enviesadas, com o género da vítima e dos
agressores a ter um papel decisivo na forma com se olha para o caso.
Como se o facto de se ser homem ou mulher tornasse a situação mais ou
menos grave. Tudo isto nos leva ao caminho da normalização da violência,
principalmente a que acontecesse em contexto de relação de intimidade. E
essa normalização é talvez a estrada mais perigosa de todas,
principalmente porque parece nunca mais ter fim.
Continuamos a desvalorizar a violência doméstica em Portugal
Ainda
me lembro de há uns meses também ter acontecido uma situação do género
em Évora, quando o Tribunal da Relação anulou uma pena de violência
doméstica usando este tipo de considerações: “Não é, pois, do mero facto
de o arguido consumir bebidas alcoólicas, ou de tomar uma ou outra
atitude incorreta para com a ofendida (por exemplo, ir ‘tirar dinheiro’
da carteira desta)” ou o facto de numa discussão “ter agarrado o
pescoço desta com uma mão, ou de, perante a recusa sexual repetida (e
assumida) da ofendida, o arguido pensar, e verbalizar, que a mesma tinha
amantes” que se pode considerar que houve maus-tratos à vítima.
Por
mais que os números anuais sejam assustadores, ainda desvalorizamos a
violência doméstica em Portugal. Continuamo-nos a esquecer que a
violência não passa exclusivamente pelas agressões físicas e a achar que
estes crimes só são realmente crimes quando existe uma tentativa de
homicídio ou quando a desgraça fatal já aconteceu. E mesmo nesses casos,
ainda muita gente se põe a ponderar até que ponto a vítima não teve
alguma culpa pela situação. Continuamos a tentar justificar as agressões
quando devíamos, acima de tudo, questionar porque é que estas acontecem
repetidamente, e em larga escala, com o mesmo padrão de géneros no que
toca a vítimas e agressores. Se queremos analisar comportamentos por
géneros, comecemos por este, por exemplo.
Continuamos
a considerar que homens e mulheres têm obrigações e direitos distintos,
já para não falar daquilo que é esperado enquanto conduta e
comportamento social e familiar de cada um. Continuamos a achar que no
toca à liberdade sexual, por exemplo, há diferenças entre o que é
aceitável para homens e para mulheres. Continuamos a achar que o
adultério feminino é mais grave, imoral, condenável e passível de
vingança justificada do que o masculino. Continuamos a achar que as
mulheres ainda se querem “belas, recatada e do lar”. Está na altura de
tirarmos a cabeça debaixo da areia e enfrentarmos a nossa realidade, que
este acórdão do Tribunal da Relação do Porto tão bem corrobora: ainda
vivemos sob a herança histórica de uma mentalidade patriarcal, misógina
e, consequentemente, discriminatória. Com tribunais e demais órgãos de
soberania a darem o mau exemplo.
Secretamente,
confesso que continuo à espera que surja um desmentido a dizer que isto
não passa de uma cabala da Internet. Que os nossos juízes – homens e
mulheres, porque isto do sexismo não é exclusivo a um género – não
contribuem para cenários de injustiça e discriminação como este, tendo
por base a manutenção da dignidade e da honra do sexo masculino enquanto
valor fundamental, e que pode ser ameaçado pelo comportamento feminino.
Mas ou muito me engano ou isso não vai acontecer. Veremos.
IN "EXPRESSO"
25/10/17
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