HOJE NO
"OBSERVADOR"
Tribunal de julgamento recusa
imunidade de Manuel Vicente e vai
enviar nova carta rogatória para Angola
O juiz do julgamento diz que Manuel Vicente não tem direito a imunidade. Nova carta rogatória será enviada para notificar ex-vice-presidente da acusação do Ministério Público.
É mais uma decisão no mesmo sentido: depois do Ministério Público
(MP) e da juíza de instrução criminal, é agora a vez do juiz que
presidirá ao julgamento do caso Manuel Vicente reconhecer que o ex-vice-presidente da República de Angola não tem direito à imunidade diplomática que diz ser portador. Mais: o juiz Alfredo Costa rejeitou mesmo num despacho datado de 18 de outubro um requerimento da defesa de Vicente a pedir a separação do processo e decidiu
enviar para Angola uma carta rogatória para o ex-vice-presidente de
Angola ser notificado da acusação do MP e decidir se quer contestá-la ou
não.
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É pouco provável que a carta rogatória seja
cumprida pelas autoridades angolanas, atendendo que já recusaram cumprir
uma primeira missiva com os mesmos objetivos expedida pela
Procuradoria-Geral da República após a emissão do despacho de acusação.
Os angolanos alegam que, ao contrário do que a Justiça portuguesa
defende, Manuel Vicente está protegido por uma imunidade que lhe é
conferida pela lei angolana — além de que os crimes que são imputados a
Vicente estarem abrangidos por uma amnistia que foi decretada pelo
ex-Presidente José Eduardo dos Santos.
Em causa estão os crimes de corrupção ativa na forma agravada,
branqueamento de capitais e falsificação de documento que são imputados
pelo MP a Manuel Vicente por alegadamente ter corrompido o procurador
Orlando Figueira para arquivar um inquérito aberto contra si.
A defesa de Manuel Vicente, a cargo do advogado Rui Patrício, tinha
apresentado um recurso no Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) sobre uma
decisão semelhante do Tribunal de Instrução Criminal mas os
desembargadores da 5.ª Secção do TRL recusaram esta terça-feira apreciar
o recurso, tal como o Observador avançou em primeira mão. Passando,
assim, a bola ao juiz Alfredo Costa — que já se tinha antecipado nesta
decisão datada de 18 de outubro.
O juiz decide
Com base num parecer emitido por Reis Novais, Rui Patrício, advogado
de defesa de Manuel Vicente, alegou junto do TRL e do juiz Alfredo Costa
que o seu cliente não podia ser julgado em Portugal por ser portador,
de acordo com a lei angolana, de imunidade diplomática durante os
próximos 5 anos — imunidade essa que abrange, segundo a defesa,
igualmente alegados crimes alegadamente praticados no âmbito da sua vida
pessoal.
Numa decisão datada de 18 de outubro, o juiz Alfredo
Costa aderiu à argumentação de sempre do MP desde a fase de inquérito e
que se explica de forma simples:
- os alegados crimes terão sido praticados por Manuel Vicente enquanto presidente da Sonangol
- logo, a imunidade a que tinha direito como vice-presidente de Angola não o protege desta acusação
Sendo consequente com esta decisão, o juiz Alfredo Costa determinou a expedição de uma “carta
rogatória à República de Angola, com urgência (…) para o denunciado
Manuel Vicente a fim de ser constituído arguido, prestação de termo de
identidade e residência e notificação da acusação [do Ministério
Público] deduzida nos presentes autos”, lê-se no despacho a que o Observador teve acesso.
De acordo com diversas fontes judiciais contactadas pelo Observador,
se Angola continuar a recusar cumprir esta segunda carta rogatória da
Justiça portuguesa, será inevitável a abertura de um processo de
contumácia que terá como objetivo notificar Manuel Vicente da acusação
produzida pelo MP contra a sua pessoa, sendo habitual, no contexto desse
processo, a emissão de mandados de detenção internacionais de forma a
que Vicente seja localizado e notificado da acusação. Caso isso, não se
se verifique, aí sim, os autos referentes ao ex-n.º 2 de Angola serão
separados e o processo continuará a sua marcha.
Tudo porque o juiz Alfredo Costa considera que:
Inexistem convenções internacionais, convenções bilaterais, ou quaisquer tratados que garantam expressamente a imunidade diplomática, de que o ora requerente Manuel Vicente se quer fazer prevalecer”, lê-se no despacho.
Isto porque “a prática dos fatos imputados ao denunciado Manuel Vicente referem-se à altura em que o mesmo era presidente da Sonangol — Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola, EP, e portanto, antes, inclusive
de ter sido empossado como vice-presidente de Angola e, ademais, sendo
que atualmente já não exerce as funções de vice-presidente da República
de Angola”. Isto é, a atividade de Vicente, segundo o
magistrado do Tribunal do Círculo de Lisboa, “alegadamente ilícita”
verificou-se “no âmbito pessoal, portanto não tem qualquer
característica de conexão a atos de natureza oficial (decorrentes da sua
função)”. Por isso mesmo, “a situação [de imunidade] nem se coloca”,
afirma o juiz.
Mesmo se fosse Chefe de Estado, como era o caso de
José Eduardo dos Santos, enfatiza do juiz, a imunidade que o protegeria
não seria “absoluta”. Além disso, acrescenta, a já
referida imunidade (…) mantém-se apenas para os agentes em exercício, de
maneira que os seus efeitos cessam aquando” do fim “do exercício das
funções oficiais” — como é o caso de Manuel Vicente.
O juiz
Alfredo Costa fez questão realçar no seu despacho que a sua decisão está
“em consonância com as doutrinas atuais que defendem que as imunidades
dos Chefes de Estado Estrangeiros têm de sofrer exceções necessárias, a
fim de os tornarem conformes a outros princípios fundamentais
reconhecidos e, até, exigidos pela comunidade internacional em termos de
Direitos Humanos e Dignidade da Pessoa Humana“, lê-se no documento a que o Observador teve acesso.
A
separação dos autos no que a Manuel Vicente diz respeito e o posterior
envio para a Angola para prosseguimento da ação penal, duas matérias que
os seus advogados estão a requerer desde a fase de inquérito, também
foi igualmente recusada pelo juiz Alfredo Costa. O magistrado fundamenta
a sua decisão na resposta que as autoridades angolanas deram, aquando
da recusa em cumprirem a carta rogatória para notificação da acusação, à
Procuradoria-Geral da República:
- Manuel Vicente não poderia ser constituído arguido por os crimes de que era suspeito (corrupção ativa e branqueamento de capitais) estavam abrangidos por uma amnistia da República de Angola;
Devido a esta argumentação que impediria a perseguição penal do
suspeito Manuel Vicente, o magistrado considera que o envio dos autos
para Angola não corresponderia a uma “boa administração da justiça” ou “melhor reinserção social em caso de condenação” — dois requisitos exigidos pela lei para enviar os autos para a Justiça de um Estado estrangeiro.
* Sobre a seriedade do suspeito e a sua dinâmica corruptora serão ridículas as dúvidas.
Salientamos a coragem do juíz português.
** A seguir reeditamos um artigo de opinião de autoria do advogado SÁ FERNANDES, bastante esclarecedor sobre a imunidade do angolano.
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Imunidade diplomática: o caso
do vice-presidente de Angola
No direito internacional há cada vez menos espaço para imunidades absolutas, as quais se devem compatibilizar com um quadro que permita uma perseguição eficaz a crimes como o de corrupção.
1. Em Fevereiro deste ano, o Ministério Público
acusou o então vice-presidente de Angola, engenheiro Manuel Vicente, de
crimes de corrupção activa, branqueamento de capitais e falsificação de
documento, uma vez que, em conluio com outras pessoas, teria actuado com
vista a obter, da parte do então procurador da República Orlando
Figueira, despachos favoráveis em inquéritos criminais em que estaria a
ser investigado, contra o recebimento de uma contrapartida pecuniária de
mais de 700 mil euros e ainda de outras vantagens, traduzidas na
celebração futura de contratos de prestação de serviços a favor deste.
Seguiu-se a pronúncia dos arguidos e a remessa dos autos para
julgamento, cujo início está previsto para 2018.
2. Os arguidos gozam da presunção de inocência e o
tema deste artigo não é a sua culpabilidade ou inocência em relação aos
factos que lhes são imputados, matéria sobre a qual não tenho qualquer
opinião (nem aqui a diria, se a tivesse). É ainda do domínio público que
existem outros tópicos processuais que as defesas têm levantado, os
quais também não são objecto da minha reflexão.
3. O que me leva a vir ao debate público tem a ver
com o estatuto da imunidade diplomática de titulares de altos cargos
políticos, neste caso à luz da situação particular daquele que até há
dias era o vice-presidente de Angola.
4. O Governo de Angola terá apresentado uma nota
verbal ao Governo português, em que terá suscitado a violação da
imunidade diplomática do seu então vice-presidente, a que o Governo
português ainda não terá respondido. Paralelamente, alguma comunicação
social tem dado uma grande ênfase a esta tese, sobretudo os jornais Sol e
i, que desde o último fim-de-semana sobre ela têm feito sucessivas
manchetes: “Relações com Angola estão por um fio”, “Luanda acusa
Portugal de violar Lei Penal Internacional, tratados da CPLP e Acordos
de Cooperação Bilateral”, “o Sol divulga requerimento da defesa que
arrasa Ministério Público”, “Governo angolano ameaça romper relações
diplomáticas em Portugal”, “Executivo de Angola enviou nota de repúdio
ao MNE português, onde promete salvaguardar a sua soberania,
independência nacional e dignidade, em função do contínuo acto
internacional ilícito praticado pela República Portuguesa”, “Tensão
aumenta entre Portugal e Angola”, “150 mil portugueses em risco de terem
de regressar se houver cortes de relações diplomáticas”, “Marcelo
preocupado com relações com Angola”.
5. É manifesta a enorme relevância deste debate, não
só pela sua importância para o direito internacional, como pelo seu
eventual reflexo nas relações entre Portugal e Angola. Foi isso que me
levou a procurar ter acesso, o que obtive, à acusação, à argumentação da
defesa e ao principal parecer em que esta se funda (todas peças de
elevada craveira técnica e de grande probidade intelectual). Entendi que
tinha o direito e senti o dever de me pronunciar sobre o assunto, até
porque ele se relaciona com a avaliação dos instrumentos admissíveis no
combate à corrupção, que é, a meu ver, um tema crucial do nosso tempo
histórico, em particular para Portugal e para Angola.
6. E a primeira coisa a dizer é que a questão não é
de resposta fácil, pelo que devemos fugir de respostas precipitadas que
nos desviam daquilo que conta para a solução. Enquadrando a minha
posição, adianto já que, a meu ver, o problema se coloca na verificação,
ou não, da existência de um costume internacional que dê cobertura à
imunidade diplomática reclamada. É que, na verdade, não há convenções
internacionais, nem convenções bilaterais, nem quaisquer tratados que
garantam a imunidade diplomática de que o Estado de Angola se quer
prevalecer em relação ao seu ex-vice-presidente.
7. A Convenção sobre Relações Diplomáticas,
celebrada em Viena em 1961, veio estabelecer – na linha daquilo que já
era um costume internacional consolidado – o princípio de que os agentes
diplomáticos acreditados gozam de imunidade de jurisdição penal do
Estado acreditador, estatuto de que também beneficiam os membros da sua
família, desde que não sejam nacionais (de que tivemos o recente exemplo
ocorrido com os filhos do embaixador iraquiano). Essa imunidade não
isenta o agente de um eventual julgamento na jurisdição do Estado
acreditante, o qual, de resto, pode renunciar à imunidade conferida aos
seus agentes diplomáticos. Mas, não acontecendo essa renúncia, é
incontroverso o entendimento de que efectivamente o Estado acreditador –
ou seja, o Estado onde o agente diplomático está colocado – deve
respeitar tal imunidade, que, ao longo da História, tem sido tida como
fundamental para garantir a segurança internacional e o desenvolvimento
de relações amistosas entre as nações.
8. Mais tarde, em 1969, foi celebrada, em Nova
Iorque, a Convenção sobre Missões Especiais, que consagra igualmente a
imunidade penal dos representantes de um Estado em missão noutro Estado,
incluindo todos os membros do staff diplomático que a integra,
matéria sobre a qual também já existia inequívoco costume
internacional, uma vez que seria incompreensível, à luz da lei
internacional, que aqueles que, numa acção diplomática, se deslocam em
missão a outro Estado pudessem ser objecto, durante essa deslocação, de
uma investigação criminal ou de quaisquer actos que pudessem pôr em
causa a sua liberdade de movimentos.
9. Entre Portugal e Angola existem acordos
bilaterais de cooperação jurídica e judiciária; por outro lado, os
Estados-membros da CPLP celebraram igualmente uma Convenção de Auxílio
Judiciário em Matéria Penal. Nesse âmbito, foram estabelecidas algumas
prerrogativas e privilégios, mas não existe qualquer regra relativa à
imunidade diplomática da jurisdição penal de titulares de cargos
políticos. Por outro lado, o que a Constituição de Angola disponha
acerca deste item – ou seja, acerca da imunidade dos seus próprios
dirigentes políticos – só se aplica em Angola, não tendo o Estado
português, ou qualquer outro, de respeitar esse estatuto, definido por
lei nacional, a qual, por natureza, não se pode impor à jurisdição de
outro Estado.
10. Pelo exposto, ao contrário do que alguma
comunicação social tem divulgado, aquilo que está em cima da mesa não é
um problema de violação de convenção internacional, de acordo bilateral,
de tratado internacional ou da lei angolana, porque o tema fundamental
se circunscreve à avaliação da existência, ou não, de um costume
internacional que garanta ao então vice-presidente de Angola a imunidade
reivindicada. De resto, o parecer de Reis Novais e Fidalgo de Freitas,
em que se estriba a defesa de Manuel Vicente, coloca o assunto
exactamente sob a óptica do direito internacional público costumeiro.
11. Neste campo, há um único dado pacífico em
matéria de costume internacional: é o da imunidade dos chefes de Estado
(conceito que se alargou de forma a também abranger os chefes de
Governo), quanto aos actos por si praticados, quer a título oficial,
quer na sua esfera privada, a qual permanece enquanto exercerem as
funções de chefe de Estado e subsiste, mesmo depois da cessação de
funções, mas somente quanto aos actos efectuados no exercício das
funções oficiais. É a solução reconhecida pelo prestigiado Instituto de
Direito Internacional, na Sessão de Vancouver de 2001.
Tal imunidade apenas conhece excepções, também já consagradas na lei
internacional, relativamente à prática de crimes internacionais (crimes
contra a humanidade, crimes de guerra, etc), onde se aceita a jurisdição
penal de tribunais internacionais, mesmo relativamente a chefes de
Estado em exercício de funções (por exemplo, o presidente sudanês Omar
Al Bashir).
Destarte, há igualmente precedentes relativamente à admissão da
jurisdição de tribunais nacionais quanto a crimes desta natureza, pelo
menos nos casos em que os chefes de Estado já deixaram de exercer as
suas funções (são sobejamente conhecidos os casos de Pinochet, avaliado
pela inglesa Câmara dos Lordes, e de Noriega, que os EUA não
reconheceram como chefe de Estado de jure).
12. Fora a situação dos chefes de Estado e chefes de
Governo, não se poderá falar de um costume internacional consolidado
relativamente a uma imunidade geral de jurisdição penal para altos
titulares de cargos políticos (a não ser, naturalmente, quando
integrados em missões oficiais em viagens ao estrangeiro, como acima
referimos).
13. Neste contexto, o principal argumento a favor de
Manuel Vicente resulta de um célebre caso, julgado no Tribunal
Internacional de Justiça, que opôs a República Democrática do Congo e a
Bélgica. Em 2000, um tribunal de Bruxelas emitira um mandado de detenção
contra o então ministro dos Negócios Estrangeiros do Congo, senhor
Yerodia, sustentado na sua lei nacional que sanciona as violações graves
do direito internacional humanitário, a qual conferia aos tribunais
belgas jurisdição em relação a crimes internacionais, independentemente
da existência de conexões territoriais e/ou de nacionalidade entre o
crime e o Estado belga. Yerodia era acusado de crimes previstos na
Convenção de Genebra e de crimes contra a humanidade, o que teria a ver
com os seus discursos de ódio, proferidos contra os tutsis, de que
resultaram centenas de assassinatos e detenções arbitrárias.
Em 14 de Fevereiro de 2002, o Tribunal Internacional de Justiça
declarou que o mandado de detenção contra Yerodia não respeitava a
imunidade de jurisdição criminal de que seriam beneficiários os
ministros dos Negócios Estrangeiros em exercício de funções. O tribunal
entendeu que essa imunidade abrangia tanto actos praticados a título
oficial como privado, uma vez que a imunidade não salvaguarda apenas a
dignidade da função de representação do Estado, mas a total liberdade e
independência de quem o representa.
É basicamente a partir deste importante precedente que Manuel Vicente
reclama a sua imunidade, uma vez que defende que o mesmo estatuto se
aplica aos titulares de altos cargos políticos, como aquele em que ele
estava investido, como vice-presidente de Angola.
14. Contudo, julgo que essa jurisprudência não se
aplica a Manuel Vicente. Desde logo, porque aquela decisão do Tribunal
Internacional de Justiça não permite a conclusão do reconhecimento da
existência de uma regra consolidada de direito costumeiro quanto a uma
imunidade absoluta da jurisdição penal a favor dos ministros dos
Negócios Estrangeiros. Não só por causa dos veementes votos de vencido,
que o impugnam, como ainda pelo teor das declarações de voto de alguns
dos juízes que votaram favoravelmente o acórdão, onde isso mesmo é
sublinhado, pelo que, em rigor, o que tais juízes contestaram foi a
emissão do mandado de detenção, na medida em que ele afectava a
liberdade de circulação do ministro dos Negócios Estrangeiros do Congo.
Mas sobretudo porque a situação dos ministros dos Negócios
Estrangeiros não é equiparável ao cargo que Manuel Vicente ocupava.
Aliás, no caso do ministro congolês, o tribunal aceitou o estatuto de
imunidade atendendo às funções diplomáticas exercidas e à circunstância
de, nas Convenções de Viena de 1969 e 1986 sobre o Direito dos Tratados,
se prever que, a par dos chefes de Estado e do Governo, só aos
ministros dos Negócios Estrangeiros é reconhecida, sem necessidade de
apresentação de plenos poderes, uma autoridade própria para a execução
de todos os actos relativos à celebração de tratados. Ora, o
vice-presidente de Angola não é titular dessa autoridade, nem de nenhuma
outra de natureza diplomática. É certo que lhe cabe substituir o chefe
de Estado nas suas ausências e impedimentos, mas, assim sendo, só se
justifica que goze de imunidade durante os períodos de substituição, não
havendo regra costumeira internacional que estabeleça uma imunidade de
jurisdição penal a favor dos substitutos de chefes de Estado ou de
Governo (fora daqueles períodos, é claro).
15. Não podemos esquecer que a doutrina e a
jurisprudência internacionais são categóricas no sentido de que a
imunidade de jurisdição penal não é conferida para servir interesses
pessoais, mas apenas enquanto instrumento de garantia de independência
daqueles que, em cada momento e em cada Estado, estão investidos na sua
representação internacional, e somente na medida excepcional em que isso
seja necessário para assegurar aquele fim. Na evolução do direito
internacional há cada vez menos espaço para imunidades de jurisdição
penal absolutas, as quais se devem compatibilizar com um quadro que
permita uma perseguição eficaz aos crimes muito graves, como acontece
com a corrupção, ademais quando está em causa a alegada compra de
favores de um magistrado de outro Estado, a fim de salvaguardar
interesses privados.
16. Em qualquer caso, desde que, em 16 de Setembro,
Manuel Vicente deixou de ser o vice-presidente de Angola (cargo
actualmente ocupado por Bornito de Sousa), o problema está ultrapassado.
É que não há qualquer dúvida de que, mesmo a ter existido, a imunidade
em discussão cessou nesse instante. Não há quaisquer vozes dissonantes
quanto ao entendimento de que essa imunidade não se aplica a quem já não
é titular do cargo que a determina e em relação aos actos praticados
fora de funções oficiais, como inequivocamente acontece com os factos
imputados a Manuel Vicente. De resto, segundo a acusação, a congeminação
da alegada acção criminosa deu-se até enquanto ele era presidente da
Sonagol e antes mesmo de ser empossado como vice-presidente de Angola.
17. A situação só se alteraria se Manuel Vicente
viesse a ser designado para ministro dos Negócios Estrangeiros ou cargo
equivalente. Aí, sim, voltaríamos ao debate inicial. Mas não creio que
João Lourenço, que, no seu discurso de posse, sublinhou a importância
decisiva da luta contra a corrupção, cometesse esse erro político, que
ensombraria gravemente o seu mandato.
IN "OBSERVADOR"
29/09/17
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