Ciclos viciosos do
absentismo feminino
“O absentismo nos homens é quase zero e
muito grande nas mulheres” diz Luís Onofre, presidente da Associação
Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e
seus Sucedâneos (APICCAPS), em entrevista ao Dinheiro Vivo. Tirando o
hiperbolismo numérico, goste-se ou não, esta afirmação mostra uma
realidade, que não é exclusivamente portuguesa.
Em geral, as
mulheres faltam mais ao trabalho por motivo de doença. Os resultados do
último Inquérito Nacional de Saúde (INE/INSA 2016), aplicado em 2014,
mostram que, com exceção do enfarte do miocárdio, do acidente vascular
cerebral, da diabetes e da cirrose hepática, e as respetivas
consequências crónicas destas doenças, as mulheres sofrem de mais
doenças crónicas, sobretudo relacionadas com o sistema
músculo-esquelético, e depressão. Este facto explica que mais mulheres
do que homens tirem baixa por doença. Cerca de 29,1% das mulheres face a
23,1% dos homens referiram ter estado ausentes do local de trabalho
pelo menos um dia completo devido a problemas de saúde, nos 12 meses
anteriores ao inquérito.
Mas as mulheres, em média, não só têm
uma saúde mais precária, como sobre os ombros carregam grande parte da
responsabilidade da execução das tarefas domésticas e prestação de
cuidados à família. Este “fardo” por si só é passível de criar grandes
disparidades na taxa de absentismo feminina e masculina. Mais, até que
ponto as tarefas domésticas e prestação de cuidados contribuem para uma
saúde mais débil é uma questão em aberto.
Quando um filho está
doente é em geral a mãe que tira o dia ou os dias para cuidar da
criança. E várias são as razões para tal. Por um lado, há famílias onde o
papel da mulher está inequivocamente ligado ao papel de cuidadora, quer
porque o homem se imiscui desta responsabilidade, quer porque a mulher
prefere ser ela a cuidar, tendo por detrás a convicção, muitas vezes
falsa, de que o pai não é tão capaz. Por outro lado, para muitos casais a
escolha de quem se deve ausentar do trabalho para cuidar da família não
é baseada em preconceitos, mas apenas resulta de uma escolha económica
racional. Se a mulher ganha menos, menos se perde se for esta a tirar o
dia. O problema é que enquanto maximizadora do rendimento do casal, esta
opção faz com que as mulheres entrem num ciclo vicioso, onde menores
salários justificam maior absentismo que por sua vez justifica menores
salários.
Mais este ciclo vicioso não é o único. O absentismo
não resulta apenas da falta de saúde e da prestação de cuidados à
família, mas também da desmotivação dos trabalhadores. Apesar de não
existirem dados que mostrem claramente que a desmotivação das mulheres
no local de trabalho é superior à desmotivação dos homens, o facto das
mulheres ganharem em média menos, participarem menos em formações
profissionais promovidas pela empresa, terem uma ascensão mais difícil
na carreira, é indicativo de que a motivação de homens e mulheres seja
diferente. Se as condições laborais forem diferencialmente desfavoráveis
para homens e mulheres, criam-se diferenças no absentismo que por sua
vez agravam as disparidades nas condições laborais, intensificando-se as
desigualdades de género no mercado de trabalho.
Por último,
para além dos motivos acima referidos, o absentismo feminino é
potenciado por expectativas e estereótipos. Por exemplo, aquando do
recrutamento de um novo trabalhador o empregador avalia a potencial
produtividade deste com base na informação da produtividade do grupo a
que este pertence. Portanto, se for mulher, cria-se imediatamente a
expectativa que ficará mais doente, que naturalmente prestará mais
cuidados à família, e que enfrentará um maior stress dado o conflito
trabalho-vida familiar. Esta mulher recebe o rótulo de absentista mesmo
antes do seu primeiro dia de trabalho. O pior é que as expectativas
podem por si só influenciar o comportamento e os estereótipos de género,
levado a que a profecia do empregador se torne realidade (a chamada
self-fulfilling prophecy). Em geral, os estereótipos sobre as mulheres
criam uma cultura de expectativa e legitimidade em torno do absentismo
feminino, levando a um absentismo real.
A afirmação de Luís
Onofre incomoda-me porque não é apenas um espelho inócuo da realidade.
Está baseada em informação, crenças e estereótipos relativos às mulheres
como categoria social, alimentando assim ciclos viciosos de
discriminação. E em relação ao absentismo feminino há muitos ciclos por
quebrar.
IN "EXPRESSO"
15/09/17
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