População,
serviços públicos
e propriedade
A tragédia de Pedrogão Grande impeliu o país a discutir e a debater pela enésima vez a gravidade dos fogos florestais e a sua relação com o desordenamento territorial, o despovoamento e o envelhecimento das populações rurais.
Parte da discussão tem sido rica e até pedagógica. Aliás, convém
realçar o esforço de certa comunicação social em qualificar o debate e a
análise ao contrário do que sucedeu num passado recente.
Face a este
debate não é possível avançar com argumentos inovadores relativamente ao
que tem sido refletido e discutido. Contudo, gostaria de identificar
três questões estruturais que estão a montante dos problemas que o país
tem vivido e na base dos seus grandes desequilíbrios territoriais: a
questão da população, a questão dos serviços públicos e a questão da
propriedade. Estas serão apresentadas sinteticamente, correndo o risco
de algum reducionismo.
Como tem sido referido por vários especialistas, não é difícil
depreender que a saída continuada de população das aldeias e o respetivo
abandono das terras contribuiu decisivamente para o aumento do risco de
incêndios que se tornaram mais frequentes, extensos e devastadores. É
assim evidente que o problema do mundo rural é cada vez mais uma questão
de falta população. No entanto, nestes tempos em que Portugal sofreu e
ainda sofre uma profunda crise económica e social, observa-se que o
desequilíbrio populacional deixou de ser exclusivo das zonas mais
deprimidas. As estatísticas já vinham evidenciando que certos espaços
urbanos e suburbanos, alguns deles em contexto metropolitano, estão a
envelhecer e em perda de população. A emigração, que atingiu níveis
similares aos da década de 60 do século passado, acelerou esta
tendência. Neste sentido, parece-me particularmente difícil que, numa
altura em que até determinadas áreas urbanas estão perda, se considere
como possível a recuperação demográfica de parte significativa dos
espaços rurais. Na verdade, dificilmente isto irá acontecer, mesmo que a
emigração diminua drasticamente e que os fluxos imigratórios aumentem
significativamente. Muitas aldeias vão mesmo definhar no futuro.
Mas esta inevitabilidade não significa o desaparecimento do
rural. Bem pelo contrário, é um erro conceber as zonas rurais apenas
como territórios de fixação. Recente investigação tem demonstrado que
estas são crescentemente zonas de circulação e de mobilidade. Ou, dito
de outro modo, os espaços rurais não vivem somente das pessoas que neles
habitam, vivem também das pessoas que por eles circulam e que
momentaneamente podem fixar-se. De facto, a atração de muitas
localidades deriva fundamentalmente de fatores que cruzam o tradicional
com o moderno, como o turismo, o consumo, o lazer, a segunda habitação, o
desporto, o mero desfrute paisagem, mas também o património, as festas e
as romarias, as feiras de produtos tradicionais, etc. Na verdade, este
rural de circulação está bem vivo. O problema é que parte da sua
dinâmica tende a assentar em pés de barro, correndo, entre outros, o
risco de se transformar numa mera montra e não numa realidade com vida
própria que derive da relação frutífera entre as atividades económicas,
os serviços prestados e as comunidades locais.
E isto remete-nos para a questão dos serviços públicos. Durante as
últimas décadas a maior parte dos espaços rurais padeceram de uma certa
bipolaridade resultante de políticas públicas contraditórias, que
tentarei balizar de forma um tanto redutora. Assim, de um lado,
particularmente a nível municipal, verificou-se, desde os anos 80, uma
melhoria significativa dos equipamentos e das infraestruturas com
consequências relevantes na vida das pessoas. Do outro, sobretudo a
nível central, o Estado foi explanando, principalmente a partir dos
finais dos anos 90, uma política de redução e de encerramento de
serviços públicos prestados às comunidades locais, designadamente nos de
apoio social, educativo e de saúde. Esta lógica de desmantelamento teve
como resultado a criação de um enorme fosso entre as populações locais e
a sua ligação às funções sociais e administrativas do Estado.
É no
âmbito desta senda regressiva que, por exemplo, se decide acabar com o
corpo e a rede de guardas florestais que tanta falta fazem à proteção e à
gestão da floresta. Todavia, numa perspetiva de racionalização dos
recursos públicos, alguns destes fechos poder-se-iam justificar. No
entanto, na maior parte dos casos as medidas foram tomadas
sectorialmente, não se desenvolvendo qualquer estratégia global e
transversal de articulação entre os diversos ministérios.
Assim, à medida que se investiu no saneamento básico, na
construção de equipamentos, no alcatroamento das ruas, nas
acessibilidades viárias, deu-se, paralelamente, um desmantelamento dos
serviços públicos mais próximos. Estas duas tendências não foram
completamente coincidentes no tempo, mas acabaram por acontecer em
muitas zonas rurais. Ou seja, o país ficou com vilas e aldeias melhor
apetrechadas e limpas, mas mais desprotegidas em termos de serviços
públicos. Este paradoxo representou uma das causas principais para que
muitos destes territórios não detivessem a capacidade necessária em
fixar parte das suas populações.
Perante este estado de coisas, a resposta no presente momento não
deve ser a de reabrir escolas e centros de saúde. Isso não só não é
financeiramente viável na maior parte das situações como,
inclusivamente, não é desejável (tirando algumas exceções). O Estado
central tem de se virar para as comunidades rurais mas a partir de
soluções inovadoras que não passam necessariamente por reabrir o que no
passado foi encerrado. Isto representa um grande desafio para as
políticas públicas para o qual as universidades e os institutos
politécnicos deveriam ser mobilizados no aprofundamento dos estudos e na
conceção de políticas de base territorial capazes de promover a
equidade social.
O objetivo passa efetivamente por reforçar a presença dos
serviços públicos nestes territórios, todavia, isto não significa
inventar a roda, mas sobretudo dar condições de viabilidade às
instituições públicas que ainda resistem nestas regiões, como é o caso
das instituições de ensino superior instaladas nas capitais de distrito e
em certas sedes de concelho e que podem prestar um serviço valiosíssimo
nas áreas rurais. A título de exemplo, o país detém uma rede
descentralizada de escolas superiores agrárias com competências
acumuladas no conhecimento da região onde se inserem. Estas podem ser
utilizadas e mobilizadas para o estudo, a elaboração e a conceção das
melhores soluções relativamente aos necessários planos de reflorestação e
de ordenamento locais, assim como, definir as melhores estratégias a
desenvolver no que diz respeito ao levantamento e identificação do
cadastro da propriedade rústica e agrícola.
A propriedade é outra das grandes questões do mundo rural. Como
se sabe, esta enquadra diferentes configurações fundiárias e lógicas de
gestão conforme o contexto territorial, topográfico, ambiental e
agrícola. Isto significa que devem existir soluções diferenciadas para a
gestão da propriedade agrária que vão desde a constituição de um banco
de terras, o emparcelamento de micro propriedades, até à possibilidade
de expropriação e nacionalização de zonas florestais completamente
abandonadas. A aplicação destas e de outras medidas depende dos variados
contextos e dos seus desequilíbrios e necessidades particulares. Também
a este respeito o conhecimento produzido pelas escolas agrárias e
institutos superiores pode ser decisivo no sentido de implementar as
melhores estratégias e as respostas mais viáveis e acertadas. Não existe
uma única solução para a questão da propriedade, contudo todas a
soluções são difíceis e requerem vontade e até coragem política.
Nem o mundo rural, nem a agricultura acabaram ou vão acabar como,
alguns autores vaticinaram no passado. No entanto, estas realidades
transformaram-se profundamente e com elas vieram novos desafios em
relação aos quais a maior parte dos governantes fecharam os olhos. É
hora de os abrir e de enfrentar de vez o que tem de ser enfrentado. O
país não pode continuar a esperar e a persistir neste desalento que nos
atormenta a todos e corrói o nosso futuro coletivo.
* Sociólogo
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
27/06/17
.
Sem comentários:
Enviar um comentário