Venezuela, meu amor
A esquerda de que faço parte nunca foi ambígua
sobre a condenação de regimes que oprimem o povo e sufocam a democracia.
Isso vale para Angola e para o regime venezuelano
Todos os dias vemos imagens de uma Venezuela
destroçada às mãos de um poder que recusa encontrar no sofrimento do seu
povo razão suficiente para renunciar. Nas ruas de Caracas, os protestos
acompanham a pobreza, os supermercados estão vazios e a fila do
racionamento só alimenta o mercado negro, onde os trabalhadores perdem
tudo e as máfias prosperam.
Em plena crise humanitária, a miséria é mais que muita, mas a
Venezuela continua a sugar as suas poucas reservas para o pagamento da
dívida externa. O desespero por dólares é tanto que o país está a
aceitar qualquer negócio, até com o diabo, como aconteceu recentemente
com a venda de títulos da dívida da empresa Petróleos da Venezuela
(PDVSA), a preço de saldo, à Goldman Sachs.
Enquanto os gigantes financeiros especulam com o destino da
Venezuela, Nicolás Maduro tenta resistir ao seu. O chavismo que
mobilizou a esperança de multidões de ex-pobres morreu afogado num poço
de petróleo, deixando como lastro uma retórica nacionalista anti-
-ianque e uma veia caudilhista que já se sentia em Chávez e pulsa em
Maduro.
O mesmo petróleo com que Chávez tirou milhões da pobreza também
serviu para corromper o exército, a burguesia e um batalhão de
burocratas. A petroeconomia rentista e desértica, sem investimento
noutros setores produtivos nem serviços públicos robustos, acabou por
traçar o seu próprio destino. O colapso do preço do petróleo levou o
país à rutura e atirou a base social de apoio do chavismo de volta para a
pobreza, sem rede pública de segurança.
Sem outra resposta para a contestação popular, o regime endureceu e
as oposições engrossaram fileiras, incluindo as que sempre agiram e até
promoveram golpes de Estado a mando dos Estados Unidos. Sim, Maduro tem a
infeliz história da América Latina do seu lado quando fala de
imperialismo, mas a verdade é que enquanto Chávez teve apoio popular não
houve intervencionismo que o impedisse de ganhar eleições.
Pelo contrário, Maduro perdeu-as. Com uma assembleia dominada pela
oposição, o presidente passou a governar por decreto presidencial com a
cumplicidade do Supremo Tribunal. Os abusos contra os restantes partidos
são constantes, da inutilização da assembleia à ameaça de ilegalizar o
Partido Comunista da Venezuela.
O regime manobra contra todos os instrumentos democráticos
constitucionais, incluindo o referendo revogatório, que permitiria ao
povo expulsar o presidente a meio do mandato. A última farsa foi a
convocação de uma assembleia nacional constituinte sem sufrágio
universal nem participação dos partidos, uma verdadeira assembleia
corporativa como a que conhecemos por cá no tempo da ditadura.
O chavismo passou de projeto do povo a ditadura de caudilho, e não há
democrata no mundo que aceite pactuar com isso. A tragédia que todos
temos medo de antever só pode ser evitada pela realização de eleições
presidenciais. É essa a saída democrática exigida pelo povo venezuelano,
é a que exigiríamos se lá estivéssemos, sem esquecer os tantos
portugueses entre a população diariamente sujeita às pilhagens e à
miséria.
Bem sei que há uma esquerda cega que, 25 anos depois da queda do
Muro, ainda acha que vale tudo na defesa de regimes pseudocomunistas. É
escolha sua se Brejnev ainda lhes aquece os corações. A esquerda de que
faço parte nunca foi ambígua sobre a condenação de regimes que oprimem o
povo e sufocam a democracia. Isso vale para Angola e para o regime
venezuelano, ainda que as calúnias da direita ignorante insistam que
lhes temos amor.
IN "VISÃO"
07/06/17
.
Sem comentários:
Enviar um comentário