Do precariado
O precariado não dispõe de salário seguro, nem há proteção social que lhe valha. Não tem direitos
Eles
são na sua maior parte hordas de jovens sujeitos a práticas despóticas
de subemprego e salários miseráveis que mal dão para sobreviver,
saltitando entre formas de emprego, peões das agências de trabalho
temporário, explorados, forçados ao trabalho informal, em suma, tudo o
que é a negação do direito elementar ao contrato de trabalho. O
precariado tem crescido a nível global, devido à transformação da
economia e da tecnologia, e faz-se de incerteza e insegurança crónicas,
mesmo tratando-se de trabalhadores especializados, detentores de
diplomas superiores. Alimenta-se ainda de eufemismos de autoemprego, de
fátuos crowdsourcing e startups...
O precariado não dispõe de
salário seguro, nem há proteção social que lhe valha. O precariado não
tem direitos face ao Estado; são pessoas a quem a essência da verdadeira
cidadania, o direito básico a ter direitos é negado, obrigados a
depender de dádivas discricionárias. Sobrevivem na privação, na
frustração. Nenhum sentimento de lealdade os prende em relação ao
trabalho sem vínculo. Sem hipótese de desenvolver uma carreira, o
trabalho é algo instrumental, externo à sua individualidade, aspirações
ou competências, e não algo capaz de determinar toda uma vida, uma
identidade profissional, uma realização pessoal pelo exercício de uma
profissão sonhada. Uma robotização das relações humanas.
Eles
desconfiam das políticas dominantes, têm dificuldade em identificar-se
com organizações de classe, sindical, associativa, político-partidária.
Manifestam-se em momentos esporádicos de legítima revolta, de
indignados, de curta representação estrutural. Sem perspetivas de
futuro, descrentes em promessas políticas que sempre os deixam de fora,
preferem antes o radicalismo e são a argamassa da demagogia do discurso
populista que inquietantemente cresce, a fazer acordar fantasmas de
desagregação social e totalitarismo de outros tempos que julgávamos
extintos e ultrapassados, fazendo perigar a democracia e a paz. Os
sinais estão aí.
Mas o precariado também se faz de largas fatias
de uma classe média empobrecida pela brutal destruição de emprego e
cortes de salários, remetida para a sua real condição de origem: o
proletariado. Uns e outros cresceram nas últimas décadas, explodiram com
a crise financeira, em países vulneráveis como Portugal. São o produto
por excelência das políticas neoliberais de Reagan e Thatcher e da
terceira via de Blair, de destruição do Estado Social, de esmagamento
dos direitos laborais, um dos efeitos secundários nocivos da
globalização, vítimas dos ajustamentos e desajustamentos do avanço
tecnológico, do digital e da robótica. Filhos e netos da geração “baby
boom”, da sociedade de consumo e da gloriosa construção europeia em
democracia, pós plano Marshall e Declaração Universal dos Direitos
Humanos, estão condenados à pobreza e à desigualdade. São os
frequentadores dos bancos alimentares, das sopas dos pobres, enquanto
embalados pelas realidades virtuais das redes sociais e pelo narcisismo
alienante das selfies, estudados pelas Ciências Sociais (Estanque,
Standing, etc.).
A raiz do problema não estará por si só na
globalização, nos avanços da tecnologia que facilita a vida, nem tão
pouco na existência de trabalho temporário. Talvez falte entender, como
grandes estadistas da História o fizeram, que a governação e a paz não
podem ficar pelas oscilações da Bolsa e das agências de notação
financeira, ou da dívida; que é preciso devolver esperança e criar
confiança no futuro através da criação de emprego justamente remunerado e
proteção social que permita um usufruto equitativo dos ganhos de
modernidade do desenvolvimento económico e do avanço tecnológico. Ou
seja, um “living wage”, uma remuneração básica, para fazer face a
despesas com alimentação, habitação, vestuário, cuidados médicos. E,
acima de preconceitos ideológicos, lateralidades partidárias, ou libelos
contra o Estado Social, possibilitar vida digna, cidadania e futuro, o
cerne de qualquer ação na polis. O que ainda é negado ao precariado.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
16/05/17
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