Um gerúndio sem samba
Levanto-me e, as mãos, os pés, o corpo cego e trôpego pelo quarto, ainda ébrio de sono, vou abrir a janela.
No quarto o ar abafado, turvo, pesado, ranço, velho, malsão.
O ar da manhã a entrar no quarto, depressa no Inverno, devagar no Verão.
Levanto-me e fico uns minutos, tem dias que parecem horas, os
minutos não são todos iguais, nunca foram, a respirar o ar novo da
manhã.
Fico de olhos perdidos na janela como um personagem de Hopper, porque o mesmo olhar vazio, porque a vida vazia também.
Fico a sossegar o corpo.
Preciso descansar dos trabalhos da noite.
A noite não é só sono e sossego.
À noite, no corpo o desassossego maior, não sei se porque os gatos pardos, se pela impossibilidade de fotossíntese.
Ser velho é isto, uma penumbra constante agravada por cataratas e miopia e a companhia de fantasmas.
E eu sou o mais velho do mundo, não conheço ninguém mais velho do que eu.
Quase não conheço ninguém.
Pela matemática devia ser o próximo a morrer, já devia ter morrido.
Morrer também é um dever, uma incontornável obrigação.
Não
fale assim, dizem-me, e com a minha idade não percebo como não me
percebem, ou percebo, vou percebendo, as pessoas aferram-se de forma tão
leviana à esperança e eu não quero morder nem ser mordido pela
esperança, fraco cupido.
Depois, os dias passam iguais, as noites passam iguais, mesmo as pessoas passam iguais, porque indistinguíveis.
Já só distingo fantasmas, os meus fantasmas.
E
apesar das noites iguais, uma rotina, um capricho, antes de apagar a
luz verifico se está alguém comigo no quarto, vejo debaixo da cama, da
cómoda, das mesinhas de cabeceira, os meus joelhos e outras articulações
a desafinar velhas canções que só eu conheço, vejo atrás dos móveis e
das cortinas, nunca encontro ninguém e nunca durmo desacompanhado.
Assim
as noites em alvoroço, os sonhos mal sonhados, quase pesadelos, as
horas intermináveis apesar de curtas, que em sabendo o que me espera
recolho-me ao quarto de madrugada. Será por coisas destas que dizem que
os velhos dormem pouco?
Recolho-me e o consolo de Luzia ao meu lado na cama a fazer-me companhia.
Recolho-me e o desconsolo de um abraço vazio, sem braços, sem corpo, oco e escuro, porque Luzia nenhuma.
Luzia, sempre pálida como um pãozinho bento, deixou-me tão cedo.
Luzia apenas dentro de mim.
Outras
vezes o meu pai a dar-me as boas noites, a minha mãe a aconchegar-me
nos cobertores, os meus irmãos. Agora sou o mais velho do mundo mas já
fui o mais novo e todos me tinham em cuidados.
E não filhos, nem sonhados, porque eu e Luzia filhos nenhuns.
Mais os amigos, tantos, tão bons, tão queridos, tão vivos, tantos funerais.
Não é para me gabar mas nesta vida fiz muitos amigos.
E o que eu gostava de fazer amigos, a descoberta, o namoro, o encanto, o orgulho na obra feita.
Quando deixamos, as pessoas podem ser tão bonitas.
E
agora perdi-lhe o gosto, ou a paciência, é que nem com as pessoas tenho
vontade de falar, principalmente com as que me tratam como se eu
tivesse cinco anos e não soubesse ler, escrever e muito menos contar,
porque nem menino de escola.
E todos os meninos da minha escola mortos.
Negócio seguro este dos funerais.
Assim as noites, como festas de São João cheias de gente, como recreios de escola cheios de meninos sem vida.
Assim as noites, vazias de sono e descanso porque cheias de solidão, uma solidão hora de ponta, uma solidão demasiado ruidosa.
Assim, até de manhã, o ar novo da manhã, e por vezes a alegria de um dia de chuva porque não me obrigam a sair de casa.
Sou
posto fora de casa, a inveja que eu tenho dos velhos da Noruega,
justificam o despejo argumentando, num gerúndio sem samba, que tenho de
manter o corpo a funcionar, repetem e repetem e repetem, como se eu
tivesse cinco anos, asseveram, levam-me a passeio como cão pela trela,
em suma, obrigam-me, fazem de mim o que querem.
Vem
uma moça, não é sempre a mesma moça, parece carinhosa, trata-me por
avozinho, mas eu desconfio deste carinho, mantém a casa em ordem, a
ordem dos dias e dos sapatos que vou calçar, das roupas que vou vestir.
Bate à porta do quarto com cuidado, verifica se respiro, se estou vivo,
vai buscar-me à janela e diz-me ser Terça-feira, pergunto sempre em que
dia estamos, dizem sempre Terça-feira, ou eu oiço sempre Terça-feira,
respondem desleixadas sem pensar, por supor que para mim tanto faz,
porque todos os dias iguais, ou talvez respondam assim como provocação à
espera da minha reacção, da minha correcção, mas eu não digo nada,
deixo-as pensar que tenho cinco anos, porque é um facto, tanto faz,
talvez seja sempre Terça-feira, porque os meus dias todos iguais.
IN SÁBADO"
17/04/17
.
Sem comentários:
Enviar um comentário