HOJE NO
"EXPRESSO"
Pelotão Memória
Todas as quartas-feiras têm encontro marcado com a guerra. Vivem entre o vazio da reforma e as emboscadas de África. O mais velho tem 96 anos, o mais novo 67. Guardiões da memória, escrevem para que a sua história da Guerra do Ultramar sobreviva. Somam 30 livros publicados que ninguém conhece
Há uma mosca às turras na janela e não há quem a veja. Seis livros e
um bolo fechados em cima da mesa. O general Nascimento Garcia está
sentado à cabeceira, mãos magras em livros grossos. Folheia o primeiro
volume da coleção, a que dedica a vida há mais de três décadas, desde
que embarcou na odisseia de resgatar a memória da guerra. Integrou o
núcleo fundador da Comissão para o Estudo das Campanhas de África (CECA)
e por aqui ficou.
Todas as quartas-feiras, lidera o grupo de militares
reformados que põe no papel as andanças da tropa portuguesa nas então
colónias, entre 1961 e 1974. Campanhas de África, diz. Guerra do
Ultramar, reforça: “Vocês gostam do termo guerra colonial, eu detesto.
Tem uma forte carga política e a nossa visão é puramente militar.” Ao
seu lado, dois coronéis caminham em Moçambique.
— Foi perto de Mueda.
— Ao pé de Mueda, não foi!
— Já lhe disse que foi morto perto de Mueda!
— Ó coronel, o senhor está a baralhar tudo!
— Desculpe, se já me esqueço das coisas...
— Você é que sabe, você é que conhece essa zona. A minha guerra foi no Niassa.
— Ó filho, já sabe que aqui cada um tem a sua guerra.
As
palavras do general Nascimento Garcia são ponto final no diálogo. A
comissão, que funciona na alçada da Direção de História e Cultura
Militar do Exército, ocupa uma sala do antigo Palácio do Lavradio, no
Campo de Santa Clara, portadas para a Feira da Ladra. Uma mesa comprida,
meia dúzia de secretárias, passos lentos no soalho de madeira. Junto à
parede, um móvel escuro é morada dos seus escritos.
A “Resenha
histórico-militar das campanhas de África, 1961-1974” soma 30 livros
publicados, mais três prontos para combate. Páginas a perder de conta.
“Estão aí a criar bolor, ninguém sabe que existem”, admite o general.
Para comprar um destes livros, só há um caminho — contactar a Direção de
História. Encosta a canadiana à cadeira, encara os seus homens — sete
combatentes pela memória.
— Ó meu general, pode ser que as
gerações vindouras tenham interesse em conhecer o passado — lança
Cardoso Alves, coronel de engenharia reformado, um dos mais novos do
grupo.
— Ó meu jovem, a guerra morreu para toda a gente há muitos
anos, só existe para uns tipos como nós, que ainda aqui andam a
pestanejar.
Acabou de soprar 96 velas, mas não há tempo que lhe
belisque o pensamento. Nasceu num segundo andar do bairro da Graça, em
Lisboa, fez a instrução primária no Campo de Santana. Ainda lá está o
prédio, ainda lá está a escola. Também a guerra. O pior dia foi em
Cabinda, árvores “até ao céu” e nem um raio de sol a vencer as copas,
quando uma coluna pisou uma mina. Tinham ido buscar o correio, vinham
embalados nas palavras da metrópole. De repente, um estrondo. As cartas
em sangue: “Perdi nove homens, havia pernas em cima das árvores.”
Silêncio na sala, um suspiro e logo baixas em catadupa, acidentes e
emboscadas. Já se sabe, aqui cada um tem a sua guerra. “Estes encontros
são muito bons, o único senão é que já conheço as histórias todas”,
sorri o general, que apanha três autocarros, da Praça de Londres ao
Campo de Santa Clara, para relembrar a guerra. E o espírito de
camaradagem que “só existe na caserna”.
Reformado “há uma vida”, tem
nestes momentos, o elixir da juventude. “Antes, escrevíamos mais, até
tínhamos umas senhoras que batiam à máquina.” Até há dois anos, marcava o
ponto todas as manhãs, depois decretou “eclipse” à sexta-feira. Agora,
vem apenas uma vez por semana. Está casado há 66 anos, a mulher caiu
doente e ele cumpre o dever de a acompanhar.
Nos dias que sobram, o grupo encontra-se à roda da sua cadeira vazia
ou noutras velhas paragens de oficiais. As reuniões são bem mais do que
trabalho, perpetuar a memória é perpetuar a vida. Juntos, estão em casa.
O presente é só uma extensão do passado. “O nosso general é a alma
desta comissão. O presidente de facto”, sublinha Cardoso Alves.
“Damo-nos todos bem uns com os outros, é uma briga pegada!” O verbo
segue risonho: “Menos com o senhor general, claro.” Patente não
prescreve.
Filho de Setúbal, Cardoso Alves traz no currículo a
vitória da corrida dos 100 metros, na inauguração do Estádio do Vitória,
e uma comissão em Moçambique. “Meu general, está aqui o livro que
pediu, com o mapa.” Aproxima-se a voz de outro coronel: “Também quero
ver, onde é que estão os meus óculos?” Cardoso Alves entra em ação: “Os
de perto ou os de longe?” As armas de hoje não são as de ontem. Entrega
os óculos, o livro: “Sou dos mais novos, vou ajudando a fintar as
partidas da memória.” Chegou da Madeira há um dia, tem lá um par de
netos que visita volta e meia: “Trouxe um bolo típico e temos aqui um
abafado caseiro.” Falta faca, faltam pratos. Sobram vozes: “Parte à mão!
Estamos em campanha, pá!” Quase todos os dias, viaja de Setúbal até
Lisboa para “ter com quem conversar”. O plano de operações traçado —
reunir, almoçar e passear com os amigos da comissão.
Regressa a casa às
quatro da tarde, “hora de ser avô”. A reforma não pode ser batalha
perdida.
— Estou calado há 17 minutos, agora é a minha vez de falar — reclama o coronel Vaz Serra.
— Isso é um recorde absoluto! — agita-se, sorridente, o general.
— Eu corri a Guiné toda! — volta à carga Vaz Serra.
—
E eu corri o Niassa, que é do tamanho de Portugal — responde, Cardoso
Alves. — Lembra-se de quando atirou a relva para dentro de casa do
governador?
— Mas por que é que está a lembrar isso agora? Estava
a levantar voo e a pista era mesmo colada à casa. Foi em Fulacunda,
perto de Tite, não é?... Ai a minha cabeça! Deixe lá ver o mapa.
— Está aqui — o indicador de Cardoso Alves aterra na geografia.
— Caramba, não vejo — lamenta Vaz Serra.
— Nem eu... — entra no coro o general.
— Já vi!
— Eu não o engano! Você queixa-se, mas eu é que tenho de lhe lembrar tudo! — atira Cardoso Alves, voz de graça.
— O que eu tenho de aturar! — remata Vaz Serra, numa gargalhada.
Quase
meio-dia no relógio do general. O coronel Vaz Serra, símbolo do colégio
militar ao peito, chama a si atenções: “Vocês nem sabem o que
encontrei!” Comanda o momento. O interesse das tropas é a melhor das
medalhas. “Encontrei o livro da escola primária da Guiné, onde está a
lição sobre o Domingos Ramos!” O anúncio cortado pela voz do general:
“Lá vem você outra vez com essa história! A generosidade portuguesa é
extraordinária, só nós para falarmos como herói de um tipo que se voltou
contra nós!” Mas o coronel só tem sentidos para o livro. Recebeu-o
povoado de dedadas de estudo, não se lembra quando. Mandou pôr-lhe uma
capa branca, guardar com afeição. A mesma que emprega nas cores do
autorretrato: “Sou oficial do exército por acaso e arquiteto por engano.
Mas vivi bem vividas as duas vidas.”
O livro na mão hasteada,
sorriso a bater continência. Cumpriu quatro comissões em África, a
primeira na Guiné, ainda a guerra não tinha estoirado. Foi lá que teve
como homem de sua confiança o soldado Domingos Ramos. Muito alto, muito
escuro, “muito vivaço”. Passou a comissão com uma espingarda ao seu
lado, e o português depressa lhe arranjou alcunha: “Era o Calcinhas,
chamávamos assim aos mais espertalhaços do recrutamento local.” Tempos
depois, já a Guiné a ferro e fogo, havia de ter notícias do antigo
subordinado: “Tornou-se braço direito do Amílcar Cabral, era um tipo
importante no PAIGC. Morreu num ataque em Madina do Boé.” Ficou na
História, o manual é a prova. Lição número 23: “Um grande patriota.” A
matéria dada numa conversa entre mãe e filha: “Mamã, hoje o professor
falou-nos do Domingos Ramos.” E a mãe a sublinhar aprendizagens: “É um
exemplo para todos os filhos da nossa terra. Era um dos dirigentes do
nosso grande partido.”
Vaz Serra não esconde entusiasmos.
Triunfante, saca da pasta uma fotografia: “Olhem!” Fardado, o camarada
que havia de se fazer inimigo. No embalo da descoberta dos livros,
passou um pedaço da noite com um lápis na mão. “Meus senhores, ouçam lá o
que escrevi!” Os outros gracejam, ele enceta leitura. Conta-lhe a vida,
a morte em combate, a trasladação de herói: “O meu guarda-costas voltou
à terra onde nos conhecemos.” Dobra os papéis. “Você é um fala-barato,
daqui a pouco está a lembrar coisas que lhe fazem mal”, adverte, em
jeito de brincadeira, Cardoso Alves. Sabe do que fala, já lhe escutou o
passado vezes sem conta.
Mas Vaz Serra não abandona o púlpito: “A
minha única grande tristeza é a morte do meu soldado mais querido, o
Barcelos”. Tinha o costume de viajar a seu lado, mas na pior das horas
seguia noutro veículo. Uma emboscada, a algazarra dos tiros e uma voz
sem retorno: “Meu capitão, o Barcelos está morto!” Correu ao encontro do
homem, mas já nem sopro encontrou, só uma bala debaixo do braço e o
corpo tingido de encarnado. “Uma pessoa nunca mais esquece...” O cantar
de um galo interrompe o luto. É o telemóvel, o coronel de regresso ao
presente: “Ah, está bem. Então, vais almoçar lá a casa, querida.” Tem
três filhos e sete netos, há sempre quem puxe cadeira à hora da
refeição. O general agarra a deixa: “Estes jovens já são todos avôs, mas
querem que pensem que ainda têm 20 anos.” Vaz Serra termina a chamada, o
presente: “A minha neta, no outro dia, queria levar o meu carro para
sair à noite, vejam lá.” Encolhe os ombros, retorna à mesa:
— Eu nunca digo quantos anos tenho, meu general!
— A idade é bonita mas tem muitas limitações — constata o general.
— A gente devia viver até aos 100 anos, mas só envelhecia até aos 35 — sonha Vaz Serra.
— Pois, queria ficar na idade em que cantava de galo! — brinca Cardoso Alves.
O
sol de março bate discreto na janela. Em África, haveria de escaldar.
Como naquele dia, há 56 anos, em que a UPA (União dos Povos de Angola)
catanou dezenas de vidas. Homens, mulheres e crianças. Brancos, mestiços
e negros. 15 de março de 1961, início da guerra. Nesse dia, o general,
que já muito andara por África, estava na então chamada metrópole. Soube
da chacina pelos jornais.
Vaz Serra desembarcara da Guiné, estava de
casamento marcado. “Os outros andavam de bibe”, graceja o general, olhar
nos rostos da mesa. Mais difícil é olhar para trás. À distância, a
guerra continua assunto com demasiadas frentes de combate. O general
desassossega-se na cadeira: “Há uma forma de ver a guerra antes, outra
durante e outra depois. Certo é que foi uma decisão política e os
militares cumpriram a sua obrigação. Continuo a não saber se teria
havido outra forma.” Vaz Serra fecha o velho manual escolar guineense:
“A guerra teria sido evitável, se o regime fosse diferente. A ideia de
que Portugal ia do Minho até Timor acabava por ser indefensável... Muito
aguentou a tropa.” Respira fundo: “Nós não perdemos a guerra, mas eles
conseguiram os seus objetivos.”
Arruma a gravata, afasta o corpo
da cadeira com cuidados dobrados: “A data de começo da guerra é muito
polémica. Ainda não sei quando é que começou.” Tem 83 anos, o presente
atracado em África.
Todos os dias almoça com velhos camaradas, quase
sempre militares. Aproximou-se da CECA no dia em que leu um texto sobre
um dos primeiros “acontecimentos” em Moçambique. As linhas asseguravam
que tinham cortado a cabeça a um padre da missão de Nangolo, de seu nome
Daniel, e atirado para “cima de um altar”. O episódio marca a história
da guerra e também a sua, algo lhe dizia que não podia deixar o engano
seguir adiante. Bateu à porta da comissão para contar a sua verdade:
“Por azar, tinha sido eu a ir buscar o corpo. Lembro-me bem... tinha os
braços todos cortados de se tentar defender das catanadas, mas estava
inteiro.” O ataque aconteceu a 24 de agosto de 1964: “Ficámos com a
ideia de que era para mostrar como era fácil matar um branco.” Acredita
que, por essa altura, já a guerra se fazia em Moçambique: “Como em
Angola, a data de início é discutível.
Dizem que foi o ataque ao Chai,
em setembro, mas isso é porque os ataques anteriores não foram feitos
pela Frelimo!” Os ânimos voltam a aquecer.
— Deixe lá isso, não se enerve — apazigua Cardoso Alves.
— Portugal escolheu sempre a versão dos outros! Neste caso, da Frelimo — intervém o general.
Silêncio. Uma lufada de sol na mesa e a mosca ainda às turras na janela.
— Sabe, meu general, hoje não estou nada bem dos olhos — regressa Vaz Serra.
— Ó filho, está com dificuldade em ver ao perto ou ao longe?
— As duas coisas.
— Mas almoça connosco?
— Não sei se estou tonto, se estou a ver mal. Um tipo chega a velho e é terrível.
— Vocês estão velhos, eu estou gasto — remata o general.
Quase
uma e meia no relógio de pulso do general, o almoço marcado na messe de
oficiais. Fica a meia dúzia de passos de distância, mas “com a idade
tudo fica mais difícil”, constatam uns e outros. A voz de Cardoso Alves
voa até ao último palmo da sala: “Ó Cação, olha que ao almoço é proibido
falar de canhões.” Todos sabem bem que o coronel de engenharia palpita
pelas velhas armas. As noites coladas ao computador, a vaguear mundo
atrás de canhões portugueses. “É uma paixão que tenho, mas na comissão
já não me deixam falar”, sorri. “Estar aqui é bom para desopilar, para
sair de casa e fazer uma coisa útil.” Registar as lembranças da guerra é
a sua última missão.
— Ó Cação, não venhas cá com canhões! — continua Cardoso Alves.
— O nosso general diz que hoje posso falar, é dia de festa.
Entre
os coronéis de engenharia não há estranhezas, percorreram a vida a par e
passo, sempre Cação no encalço de Cardoso Alves. Agora, reencontram-se
na comissão. Há livros sobre os mortos da guerra, as operações
militares, as unidades enviadas da metrópole... A eles, cabe escrever
sobre as obras da engenharia. Cação está sentado na última secretária da
sala, no ecrã do computador, uma foto de uma ponte em construção. Daqui
a pouco mais de um mês, há de ter a primeira versão do livro pronta
para mostrar ao general, já vai em mais de 300 páginas. Nunca disparou
um tiro, mas fez explodir toneladas de explosivos: “O que nós
construímos e com aquelas dificuldades!”
O general sacode a cabeça
lentamente: “Ninguém quer saber disso, filho...” Cação atravessa a sala,
olhos postos na estante: “Querem apagar a nossa História.” Custa-lhe a
falta de pilares, nem promoção nem livraria. A falta de leitores. Há
muito carrega certezas: “Se uma pessoa escrever um livro e oferecer aos
amigos, 90 por cento não lê e 50 por cento nem abre.” O general volta à
carga: “Há livros que não têm interesse para o público em geral, mas não
há nenhum sem valor histórico.” O futuro é a sua esperança: “Talvez um
dia...” A mesa em silêncio e a mosca às turras na janela. Um pensamento
em cada olhar, a pior morte é o esquecimento.
O coronel Henrique de Sousa aproxima-se. É o autor dos três livros
mais recentes, todos à espera de lançamento. Juntou-se à comissão no
começo do milénio, pouco depois de passar à reserva. Tinha 58 anos e os
dias desertos. Uma manhã, disse à mulher: “Não posso continuar fechado
em casa.” Cruzou o umbral e foi à procura de ocupação. Tentou trabalhar
numa ou noutra função, mas o espírito militar cola-se à alma, sobretudo
para quem traz o exército no sangue — já o pai e o avô vestiam farda.
Conhece o general desde os oito anos, por essas e por outras, pensou
oferecer-se para a comissão. Desde então, nunca mais parou de escrever
sobre as operações na Guiné. Como todos os outros, os seus livros
baseiam-se nos registos oficiais do exército, nos documentos que povoam o
arquivo. Apoia-se numa cadeira: “Há muitas obras com a visão pessoal de
antigos militares, nós temos os factos, a versão oficial. Também
recorri a alguns testemunhos, mas o mais importante são os documentos.”
Confia no tempo: “Hoje, há muita gente interessada na I Guerra Mundial,
quem sabe se não se lembram da nossa daqui a 30 anos?”
O começo
da guerra apanhou-o na Academia Militar. Lembra-se como se fosse hoje do
discurso de António de Oliveira Salazar acerca de Angola, na televisão:
“Andar rapidamente e em força!” As palavras do estadista valiam como
guia de marcha: “Sendo eu militar do quadro, ficou claro que seria
mobilizado.” Esteve na paz de São Tomé e Príncipe e no calvário da
Guiné. “Quando vamos para uma comissão, sabemos que podemos morrer, mas
nunca se pensa nisso. Sempre achei que estava a cumprir o meu dever,
quando morresse, morria.” Um dia, adivinhou a sua hora. Foi em Bula,
quando um foguetão de fabrico soviético rebentou demasiado perto. O
efeito de sopro levou a vida de uma mulher que caminhava à sua frente.
Ele abrigou-se o melhor que pode, certo de que o próximo o apanhava: “A
impotência é o que mais custa, não dá para ripostar, podem ser
disparados a quilómetros de distância.”
O 25 de Abril encontrou-o
de novo a estudar, desta feita, no curso do Estado-Maior. Desde 16 de
março e do falhado Golpe das Caldas, sabia que a caserna não dormia. Na
manhã de todos os cravos, sorriu crenças ao ver tantos camaradas da
Guiné ao lado de Salgueiro Maia, no Terreiro do Paço: “Estávamos há
muito à espera de uma solução política para a guerra, era a única
possibilidade mas nunca mais chegava.” O coronel Vasco Valdez, anos a
fio ajudante de campo do Presidente Mário Soares, junta-se à conversa. É
o mais novo da comissão e o único que nunca carregou uma G3 em África.
Veio parar à comissão para ocupar o tempo, para continuar a sentir-se
militar. A sua primeira missão foi ajudar a terminar um livro sobre
Moçambique. O autor principal tombou doente e ele assegurou a vida da
memória. Da guerra que ajudou a acabar. “Fui um dos capitães de Abril,
integrei a coluna que veio de Mafra para ocupar o aeroporto.” A coluna
que ficou conhecida por chegar atrasada, tão atrasada que um homem só já
havia irrompido aeroporto adentro. Valdez, então capitão, seguia à
frente no seu Fiat 850, à laia de batedor.
O general escuta cada
palavra: “Fala-se de tudo, menos dos homens que viveram a guerra. Não
somos odiados nem amados, simplesmente ignorados.” Segura a canadiana,
levanta-se:
— Meus senhores, vou almoçar.
— Vamos lá, senhor general — respondem a uma só voz.
Já
a mosca voou por uma janela, já o bolo se fez migalhas e os livros
continuam em cima da mesa. A conversa segue escadaria abaixo, azulejos
oitocentistas na parede do palácio. “Faça favor, meu general.” Dois
andares de sorrisos. Os netos, as doenças, as histórias. A guerra.
Recordar África é reviver a juventude. Aquietam-se à porta, sol nos
rostos apaziguados. O general cerra as pálpebras um instante. Parece
embalado pelo verbo de um antigo escritor escocês: “Deus deu-nos memória
para que possamos ter rosas em dezembro.” O tempo poda os piores
espinhos.
* Existirá sempre muita informação para ser tratada sobre a "Guerra Colonial" pena é que por poucas vezes se tenha dado voz aos milicianos que obrigados a ir para a guerra a viveram de modo mais verdadeiro no que respeita a carências, teatro de guerra e desonestidade das hierarquias.
Sempre que se falar de "Guerra Colonial" é-se obrigado a destacar a obra prima da comunicação social que foi o trabalho de JOAQUIM FURTADO para a RTP.
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