Crianças com cancro:
ter esperança mesmo
na hora da aflição
Hoje, 15 de Fevereiro, é tempo de reafirmar o que une médicos e
associações de todo o mundo: nenhuma criança, qualquer que seja o país
de origem, condição social ou religiosa, deveria morrer de cancro
O cancro pediátrico é a primeira causa de morte por doença na
criança após o primeiro ano de vida. A cada três minutos que passam, uma
criança ou adolescente morrerá no mundo vítima da doença. Neste ano que
começou há pouco, 300.000 crianças e adolescentes até aos 20 anos serão
diagnosticados com cancro. Se as primeiras linhas deste parágrafo nos
prendem pelo horror, as seguintes devem prender-nos pela esperança: com
acesso a cuidados de saúde de qualidade, a taxa de sobrevivência destas
crianças e adolescentes é superior a 80%.
É por estes números, simultaneamente preocupantes mas carregados de
confiança, que numa parte muito substancial do mundo – da Nova Zelândia a
Espanha, do Chile ao Canadá, da África do Sul à Roménia ou à Índia – se
assinala hoje o Dia Internacional da Criança com Cancro. A data
pretende aumentar a consciência da sociedade para este drama mundial.
Fá-lo com especial foco nos países menos desenvolvidos, onde muitos
casos permanecerão por diagnosticar. De facto, 80% das faixas etárias
referidas provém de países com rendimento médio / baixo onde os sistemas
de saúde são fracos, frequentemente inacessíveis, e os medicamentos
essenciais não estão disponíveis ou são demasiado caros. Fá-lo, ainda,
porque muitas destas crianças não recebem, ou não completam, os cuidados
de saúde indispensáveis. Por isso, mais de 90% das mortes por cancro na
infância ocorre em países com poucos recursos.
Em Portugal são detectados, anualmente, mais de 350 casos de cancro
em crianças ou adolescentes, sendo que a taxa de sobrevivência é
elevada, ao nível dos países mais desenvolvidos. No entanto, o espaço de
tempo que medeia a frase “o seu filho/a tem cancro” e a frase “o seu
filho/a está curado” pode ser longo, seguramente desestruturante,
repleto de incertezas, angústias e esperanças em proporções nem sempre
justas. Os tratamentos e os internamentos tanto podem ser intermitentes
como longos, obrigando a ausências imprevistas do lar, da escola ou do
local de trabalho no caso dos Pais, com consequências óbvias na
estabilidade familiar, escolar e laboral. Para uma família dos Açores ou
da Madeira, do interior mais interior ou do Algarve, o cancro numa
criança ou num adolescente pode implicar uma alteração radical de
ambiente – mudança de casa, de cidade, de amigos; perda das referências
de cheiros, de ruídos, de rotinas.
Podemos olhar para o cancro pediátrico como um processo que retalha a
manta que é a vida das pessoas afectadas. Mas podemos olhar para o
cancro pediátrico como uma tapeçaria que se vai construindo todos os
dias com os fios que são as certezas: os tratamentos, as consultas, os
medicamentos, os efeitos colaterais, as estatísticas, as informações
garantidas. Entre estes fios, porém, existe uma enorme imprevisibilidade
feita de perguntas por responder: para onde vou viver com o meu filho?
Como vou viver, com que dinheiro? Como garanto o meu posto de trabalho?
Como vou encher os meus dias de solidão e desesperança, quem me dará a
mão para partilhar uma alegria ou uma tristeza? Quem ficará com o meu
filho para eu ir às compras ou para me resguardar num isolamento que
protege? Quem me responderá a todas as minhas dúvidas? Quem perceberá o
que eu estou a passar?
A Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro,
nasceu em 1994 com o objectivo de preencher os vazios desta tapeçaria,
de manifestar a sua presença nos pontos do caminho para onde ninguém
olha, onde ninguém está ou está desatento, porque os apoios do Estado
são limitados, porque o espanto e a angústia impedem a orientação nos
corredores do hospital ou nos meandros da lei, porque não há força
anímica que sustente dias infindos num quarto de pensão impessoal ou num
banco de automóvel. Mas, acima de tudo, porque ninguém fala melhor com
uns Pais assustados do que uns Pais que passaram pelo mesmo; ninguém
fala melhor com uma criança a quem foi diagnosticado um cancro do que um
adolescente que percorreu com sucesso esse caminho, e que se torna a
prova viva da possibilidade de cura.
A Acreditar, como única instituição portuguesa de solidariedade
social exclusivamente dedicada à oncologia pediátrica, constitui-se como
uma entidade complementar: não nos substituímos a ninguém cuja
competência ou autoridade sejam superiores; não nos substituímos aos
Pais, aos profissionais de saúde, ao Estado. Trabalhamos em conjunto com
todos, para que a vida das crianças e adolescentes que foram afectados
pelo cancro, assim como a dos seus Pais, seja mais fácil, mais
confortável, mais digna, menos penosa; para que a possibilidade de cura
destas crianças e adolescentes seja cada vez maior, e as sequelas cada
vez menores; para que a legislação aplicável nestes casos não seja um
espartilho em cima de uma tragédia. Para isso, e para muito mais que não
cabe neste artigo, é preciso alargar a consulta dos doentes que
ultrapassaram a doença com sucesso; é forçosa a criação segura de um
Registo Oncológico Pediátrico integrado no Registo Oncológico Nacional; é
imperioso garantir-se a continuidade dos estudos, em ambiente escolar
ou hospitalar, a quem deles precisa ou quer; é necessário
salvaguardar-se os direitos laborais de quem tem de ausentar-se de forma
repetidamente fraccionada do seu posto de trabalho.
Como condição necessária, mas não suficiente, para que o referido
acima se cumpra, é fundamental que a interacção entre as associações de
doentes e os hospitais de referência seja cada vez melhor, com canais de
comunicação próprios que proporcionem, entre outros, o conhecimento
antecipado de planos de alteração na oncológica pediátrica. Pretende-se
tão só assegurar benefícios óbvios para estes utentes que, por serem
crianças e / ou adolescentes, vivem uma situação de enorme fragilidade.
Hoje, Dia Internacional da Criança com Cancro, a Acreditar inaugura a
sua terceira casa de acolhimento, desta vez no Porto, em terrenos do
IPO cedidos para o efeito. À semelhança do que já acontece com as casas
de Lisboa e Coimbra, esta será a casa longe de casa para todos os que
precisam e não têm um sítio onde ficar. Aqui, não obstante a diferença
de sotaque, de hábitos alimentares, de ambiente social ou familiar, quer
sejam nossos conterrâneos, quer dos PALOP, todos usarão a mesma
linguagem, todos recorrerão a expressões verbais ou não verbais que
caracterizam uma comunidade afectada pelo mesmo drama: criança, cancro,
adolescente, dor, lágrimas, risos, voluntários, profissionais, mãos que
tocam, olhos que focam, sentido para a vida; esperança, esperança,
esperança.
Ali, naquela casa como nas outras, viverão o tempo que for
necessário, sem mais custos do que os custos que sobrecarregam uma alma
confiante ou um corpo cansado. Não viverão da generosidade da nossa
associação, que mais não somos do que fiéis depositários, mas da
generosidade de empresas e particulares que nos permitem prosseguir o
nosso trabalho em prol de quem devia estar num recreio de escola, não
num corredor de hospital.
Hoje, dia 15 de Fevereiro, é tempo de reafirmar uma convicção que une
médicos e associações de todo o mundo: nenhuma criança, qualquer que
seja o seu país de origem, condição social ou religiosa, deveria morrer
de cancro.
*Presidente da Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro
IN "OBSERVADOR"
15/02/17
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