Números sem rosto
Em Portugal, 23,8% dos habitantes não
conseguem manter a casa quente. Em dezembro, foram registados 224 489
beneficiários de prestações de desemprego. O número estimado de
sem-abrigo ronda os cinco mil em todo o país. O fluxo de migrantes
chegados à Europa através da Turquia diminuiu de mais de um milhão, em
2015, para 390 mil no ano passado. Há quase dois mil migrantes e
refugiados que dormem no interior de armazéns abandonados junto a uma
estação ferroviária de Belgrado, debaixo de temperaturas que chegam aos
13 graus negativos.
Os excertos são de notícias deste fim de semana. São dados sobre quem está particularmente vulnerável no período de inverno. São estatísticas, algarismos, percentagens. São sombras anónimas nos becos das cidades. São gente em trânsito à procura de futuro numa Europa de portas fechadas. Lemos, mas não lhes vemos o rosto. E é por isso que tranquilamente viramos a página, depois de breves instantes de surpresa ou compaixão.
Comovemo-nos
com a fotografia de Aylan Kurdi sem vida na praia ou com o rosto
ensanguentado de Omran, o menino resgatado dos escombros em Aleppo. São
momentos em que a tragédia tem a dimensão exata de uma vida. Está
vestida de gente. Mas passa o sobressalto e a miséria dos outros volta a
ser, quase sempre, um amontoado de números. Distantes de nós. E para
haver empatia, da que nos agita e nos faz agir para mudar a vida das
pessoas, é preciso que sejamos capazes de lhes ver o rosto. Esse gesto
simples de olhar o outro como gente é hoje de uma urgência que chega a
assustar.
Há, nas redes sociais, uma discussão quase irracional sobre os voluntários que partem para Leste e vão ajudar migrantes. Com um argumento à cabeça: para quê ir para tão longe? Por que não ajudar os sem-abrigo que andam mesmo ao nosso lado? É pequenino este debate sobre onde se ajuda. Esta tentação de discutir se o meu voluntariado é melhor do que o teu.
O
sofrimento não tem lugar, raça, nacionalidade ou credo. Os voluntários,
estejam eles na esquina mais próxima ou no fim do Mundo, em hospitais
ou na rua, em associações ou em escolas, devolvem a quem precisa de
ajuda a dignidade de ser mais do que um número. Por estes dias de
pessimismo em que tantos apregoam o fim do Mundo, prefiro celebrar quem
põe as mãos na massa por um Mundo novo. E consegue dar um rosto aos
fantasmas das estatísticas, vivam eles no Porto, em Lesbos, em Belgrado
ou na porta ao lado.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
23/01/17
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