ESTA SEMANA NA
"VISÃO"
"Fui 5 anos escrava em Portugal"
Lana tinha dez anos quando foi vendida por mil euros pela própria mãe. Foi espancada, forçada a roubar, obrigada a dormir com dois homens. Obrigada até a entregar Escrava um filho. Tudo debaixo dos olhos de assistentes sociais, da polícia e de um hospital público. Como é possível o sistema ter falhado desta forma, e durante anos? A VISÃO passou meses a tentar encontrá-la. Descobriu-a numa casa-abrigo de localização secreta e conta agora a sua história chocante
Lana tem dez anos e esta noite vai dormir com um homem. Ninguém lhe disse que não teria escolha.
Não
foi isso que a mãe prometeu quando lhe contou que iria ser levada de
avião para a Irlanda, teria uma nova família e nunca lhe faltaria nada.
Nenhuma criança está preparada para compreender que foi vendida pela
própria mãe. Também não é normal que saiba o que é isso de dormir com um
homem muito menos com um que não escolheu. Lana vai aprendê-lo esta
noite. E vai reaprendê-lo de todas as vezes que for violada nas cerca de
400 noites que se vão seguir em Dublin.
.
.
Mal
o avião aterrou na Irlanda, contaram-lhe que aquele homem na verdade,
ainda nem um homem, um adolescente de 15 anos que nunca tinha visto
seria o seu marido. Que partilharia casa com ele, com o pai, a mãe e o
irmão mais velho. E teria de ir para as ruas mendigar se queria ter o
que comer.
A
Lana de hoje, que não descola de Madalena, a psicóloga a quem chama
"mãe emprestada, mãe de coração", a Lana efusiva que hoje ri mais do que
chora, a Lana que é vaidosa nas suas calças de ganga, casaco desportivo
e tranças miudinhas, é a Lana que não se esquece de como, naquele dia,
ainda um fio de gente, se sentiu ainda mais pequena a fazer-lhes frente:
"Obrigou-me a pedir e a roubar. Eu dizia: 'Não posso fazer isto. Não
gosto de ti. Quero ir para a minha mãe, quero ir embora.' E ele dizia:
'Não vais não, vais ficar, fazer o que quero e ganhar dinheiro para
nós.'" Lana jamais o teria escolhido. Chorou, clamou, gritou que não
gosta dele, que não o quer, que não tem idade nem corpo para saber o que
é isso de casar com um homem. De nada lhe valeu quando o que sobra é
este retrato: o de uma menina anichada como uma raposa, dobrada de dores
e de medo.
Ao fim de pouco mais de um ano de agressões com paus e cabos dobrados, Lana mal conseguia andar.
Doente
já não seria útil. Puseram-na num avião e devolveram-na à Roménia. Quem
cuidaria agora dela? O pai? Nunca soube quem era. A avó? Bem que a foi
buscar ao hospital quando a mãe a quis abandonar à nascença e bem que
dela cuidou até aos dez anos, mas entretanto mudara-se para França.
Restava-lhe uma mãe com quem vivera apenas dois meses e que a empurrara
para a servidão. Mas que pelo menos parecia arrependida, surpreendida
até com as agressões, magoada por tê-la deixado ir: "Ó filha, eu não
sabia, não sabia." E a filha perdoava e respondia com um pedido de
desculpas por ter duvidado da mãe.
O cansaço era tanto, a saúde tão frágil, que durante uma semana Lana não conseguiu sair da cama.
Sentada
na ponta da cadeira, de tronco tombado sobre o colo da mãe emprestada,
Lana fala muito rápido, tão rápido que às vezes ninguém na sala da
casa-abrigo a entende. Como se assim fosse mais fácil recordar o que se
vai seguir: uma história que atravessou fronteiras e durante anos
escapou aos olhos de vizinhos, polícias, assistentes sociais e
hospitais.
A VENDA
Quinze
dias depois da chegada à Roménia, acaba o período de paz na pequena casa
de Cluj-Napoca, a terceira maior cidade do país. A mãe tem novos pla-
nos para Lana: "Vais ter um novo marido. Vais trabalhar.
Vais
ganhar o teu dinheiro e mandar dinheiro para a mãe para ajudar as tuas
irmãs. A mãe sabe o que é melhor para ti." Lana sai com as suas roupas e
com o passaporte.
Faz
calor, um calor anormal para a primavera, como se alguma coisa ardesse à
superfície da paisagem que deixa para trás. A controlá-la, sentado ao
seu lado no autocarro, segue um romeno corpulento de quem nada sabe
apenas que se chama Marius e que pelo aspeto terá pouco mais de 30 anos.
Colada ao vidro a ver passar a terra que a expulsa, pergunta-se como
será esse lugar para onde a levam. Enquanto as horas passam e já todos
dormem, pergunta-se se deve sentir saudades da mãe que ela ainda não
sabe que a acabou de vender por mil euros. Menos de dois anos depois da
primeira viagem, Lana está de regresso à rota do tráfico.
Chega
a Portugal e é levada para uma vila perto de Oliveira de Azeméis.
Aquela que será a sua sogra (mas que em público deverá tratar por
madrasta) chama-se Lucia e não demora a apresentar-lhe uma lista de
tarefas: vai ter de acordar todas as madrugadas, às 6h30, para limpar a
casa, lavar a roupa à mão, cozinhar.
E
vestir, cuidar e dar de comer a quatro dos então seis filhos do casal
Lucia e Marius, com idades entre um mês e 12 anos de idade. Na
realidade, o mais novo só uns dias depois virá para casa: teve de ser
assistido no hospital por falta de cuidados maternos, e foi ali
abandonado, doente, pelos pais. Lucia e Marius vão inventar uma desculpa
terem ido à Roménia renovar documentos para recuperarem a guarda da
criança.
Ainda
naquele dia, Lana é apresentada àquele que será o seu segundo marido.
Também se chama Marius, como o pai. É um miúdo da sua idade (12 anos),
magro, imberbe, de cara afunilada. Lana faz finca-pé.
Diz
ao sogro que não gosta dele. "E lá tens de gostar? Fazes o que eu
quero." Ela replica: "Vais obrigar-me a dormir com o teu filho se não
gosto dele?" Lana tem 12 anos e esta noite vai ter de voltar a partilhar
quarto e cama com um homem. O resto virá por fases. No final de 2010
Lana está em pânico com a sua primeira menstruação. É a pior coisa que
lhe podia acontecer. Acabou-se a misericórdia. Daí em diante, pelo menos
uma vez por semana, e durante quase quatro anos consecutivos, vai ser
violada pelo novo marido. Quando ousar dizer que não o quer, alguém
dentro de casa o próprio Marius, ou o sogro ou a sogra vai puxar da sua
força mais bruta e bater-lhe até ela parar de se queixar. Até que se
resigne.
Ninguém a vai ouvir chorar enquanto fingirem que são marido e mulher.
A DESGRAÇA
A
primeira medida da família para impedir Lana de desaparecer foi
esconder-lhe o passaporte e a certidão de nascimento. E para desviar as
atenções das assistentes sociais e da polícia ensinaram-na a mentir:
deveria dizer que os miúdos e o marido eram seus irmãos, a sogra,
madrasta e o sogro, pai, como se fosse o resultado de uma relação
extramatrimonial entre Marius "sénior" e a sua mãe de sangue.
A
qualquer hora, Lana tinha de estar disponível para cuidar da casa ou
das (outras) crianças. Em menos de nada, o recém-nascido foi mudado para
o quarto dela, para que fosse ela a socorrê-lo caso chorasse durante a
noite. Se a comida não ficasse boa, era espancada. Se se esquecesse de
alguma tarefa, era espancada. Se aquecesse demasiado o leite do bebé
-porque tinha 12 anos e ninguém lhe ensinou como medir a temperatura,
era espancada. Espancada com as mãos, com vassouras, com um taco de
basebol. Durante anos os vizinhos foram testemunhas da sua desgraça:
viam-lhe os hematomas na face, nos olhos, na cabeça. Quando as marcas
eram indisfarçáveis, Lucia inventava uma história para a vizinhança: uma
em que as crianças, na brincadeira, tinham magoado Lana.
Como
se fosse pouco o que fazia, a menina ainda costumava ajudar uma mulher
que vendia velas no cemitério ou as que iam lavar as campas dos
familiares.
Os
gestos eram pagos com umas moedas, que raramente conseguia esconder dos
sogros. No café da dona Paula, que ficava na sua rua, o mais recorrente
era comprar apenas uma pastilha, por cinco cêntimos. Na verdade, o que
estava a comprar não era uma pastilha. Era tempo. Naquele espaço podia
esquecer-se da vida que tinha: conversava com quem estava, ria-se, via
televisão. A caminho entre casa e o café, uma vez ou outra chegou a
despir a saia, comprida e pesada, que a obrigavam a usar para ficar com
as calças que encontrara num caixote de roupa para os pobres. Por
momentos, com este disfarce, podia vestir-se como as adolescentes da TV.
Os
sogros viviam em Portugal desde 2009, e embora na terra conhecessem o
pai Marius como vendedor de carros, nenhum deles declarara quaisquer
rendimentos ou ocupação profissional. Acabados os €600 de Rendimento
Social de Inserção e os €70 de abono dados à família, Lana era obrigada a
uma nova função: ir à mercearia e aos supermercados roubar barras de
queijo flamengo, champôs, Snickers, frascos de creme, latas de Redbull.
Das prateleiras, os produtos iam para dentro de um saco, colocado
estrategicamente debaixo da saia. "Odiava.
Morria de vergonha por ter de roubar a quem trabalhava.
Eles
diziam que tinha de ser assim, mas eu sabia que podia não ser", lembra
Lana, agora com 19 anos, tão rejuvenescida, com o seu cabelo finalmente
livre e solto. Chegou a ser apanhada a roubar, ouvida pela polícia e
presente a tribunal. Nunca contou que o fazia a mando de Lucia.
A
7 de agosto de 2014, pelas cinco da tarde, a sogra exigiu-lhe que fosse
roubar ao minimercado. Recusou, e foi espancada com um pau nas pernas e
proibida de dormir em casa nessa noite. Meses depois, a 18 de dezembro,
ao negar-se novamente a roubar, Lucia agarrou-a pela cabeça, empurrou-a
contra a porta de entrada da casa e voltou a usar um pau para lhe bater
nas pernas. Lana ficou com duas escoriações no crânio, um hematoma na
face e outro na perna.
Nesse
mesmo mês, já o marido tinha aparecido no café da dona Paula e
provocado uma cena de ciúmes. Pontapeou-a pelas costas, agarrou-a pelos
cabelos e arremessou-lhe a cabeça contra uma porta de ferro que ficou
até hoje amolgada, tamanha a violência do embate.
Depois, enxotou-a até casa como um cão tinhoso, enquanto a enchia de murros e a sacudia com pontapés.
Na
sala pequena onde recorda tudo, Lana solta um grito quando cola as suas
mãos quentes às mãos frias de Madalena. E é a primeira a acrescentar:
"Mas tens o coração quente, eu sei." A psicóloga brinca: "Está
completamente portuguesa." Lana não quer ser outra coisa. "Não quero ir
mais para a minha terra. Estou tão bem aqui." Nem sequer gosta muito de
viajar. Só ela sabe o que lhe aconteceu sempre que teve de partir.
O ROUBO MAIOR
Lana entra na mercearia da dona Fátima a chorar convulsivamente.
Ajude-me, que eu não consigo mais.
A custo, acaba por confessar estar a fugir de Lucia.
Está cansada, não quer roubar mais muito menos a quem, como ela, é sua amiga e pede-lhe ajuda para denunciar o caso à GNR.
Agora,
a dona da loja já percebe o misterioso desaparecimento de alguns
produtos. E também as nódoas negras que aqui e ali descobria em Lana.
Pergunta-se
como não percebeu logo a história. Mas a verdade é que ninguém
percebeu. Até as técnicas dos serviços sociais, que acompanhavam a
família desde 2009 e já teriam ouvido a comunidade comentar que uma
rapariga seria vítima de maus-tratos, passaram anos sem dar pela
presença de mais uma pessoa lá em casa. E quando finalmente confrontaram
Lucia e Marius com a existência de mais um elemento no agregado
familiar, foram na cantiga de que Lana era fruto de uma relação
extraconjugal de Marius, e que nunca a assumiram porque não tinham
documentos válidos.
Em
frente aos militares da GNR, Lana não tem coragem de desmentir essa
versão, queixando-se apenas de ser vítima de maus-tratos. O sogro
entretanto aparece, jura-lhe pelos filhos que nunca mais será agredida e
ela cede. Bastaram uns minutos, o tempo de chegar a casa, para ouvir
que, afinal, nada mudaria.
A
sorte é que naquela mesma tarde 19 de dezembro de 2014 a GNR bate à
porta e obriga Marius a entregar os documentos que até então tinha
escondido. É nesse momento que a jovem pede aos polícias para a levarem
para longe. Lana, a quem a vida deu razões para não confiar em ninguém
nem acreditar em novas oportunidades, quis salvar-se.
"Sempre
confiei muito em Deus, rezava muito nas igrejas sozinha. Entreguei a
minha vida nas mãos dele. Não conhecia ninguém mas confiei. Tudo o que
queria era sair dali", diz de rompante, solta, na sua mistura de
sotaques. Pela primeira vez não teve medo o desconhecido não poderia ser
tão horrível como o que já conhecia. "A minha vida não foi fácil, mas
agora é", resume, enquanto se aninha na cadeira e se enrola no cachecol.
"Fui eu que decidi mudar a minha vida." Dito assim, tudo parece tão
simples. Naquele dia, Lana já não voltou a casa. Tinha 16 anos. Foi
escrava durante seis.
O
caso foi participado à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens.
Durante meses, enquanto estava num lar de acolhimento, teve de enfrentar
a agonia de reviver a sua história perante a GNR, assistentes sociais,
psicólogos, Polícia Judiciária (PJ) e finalmente um juiz. Passo a passo,
ia incluindo mais pormenores, de Portugal à Roménia, da Roménia à
Irlanda, até chegar aos mais sórdidos. O maior segredo de todos ainda
estava para ser revelado. Não tinha propriamente prazer em anunciá-lo ao
mundo porque toda a dor desaguava nele.
- Eu tive um bebé.
- Como assim, um bebé? Onde? Quando? Onde está?
- Depois de ter o período engravidei do Marius.
Levaram-me para o hospital e tive uma menina.
A
história apanhou todos de surpresa. Foi preciso vasculhar os registos do
hospital, em Santa Maria da Feira, e desencadear um imenso trabalho de
investigação para se descartar a hipótese de que Lana, perturbada pelos
últimos desenvolvimentos, não estaria a alucinar. Nenhuma prova
confirmava a sua versão: não havia registo de ter tido qualquer criança
naquele hospital, nem sequer de alguma vez lá ter entrado.
Havia
registo de um parto, sim, em 2012, mas de Iasmina, personagem até aqui
desconhecida, filha mais velha de Lucia e Marius, residente em Espanha.
A
unidade da PJ que investiga crimes de tráfico de seres humanos no norte
do País e que tomou conta do caso de Lana descobriu que o casal usara
os documentos da filha verdadeira para dar entrada com a falsa filha no
hospital, imediatamente antes do parto.
Foi a primeira vez que Lana entrou num hospital.
Nunca fora vacinada nem tivera qualquer cuidado de saúde, nem em Portugal, nem na Roménia, nem sequer durante a gravidez.
A
menina nasceu, com 2,8 quilos, e um hematoma na cabeça, que os médicos
estranharam. Até hoje Lana não afasta a ideia de que isso aconteceu
porque o pai da criança nunca se coibiu de lhe dar enxertos de pancada,
acertando-lhe em cheio na barriga onde o bebé crescia.
Depois do parto, Lana mal conseguiu ver a filha.
Lucia
convenceu a unidade de neonatologia do hospital de que era a avó
materna da criança e que o pai teria ido viver com outra mulher para a
Roménia, deixando a companheira desamparada, sem dinheiro e com um filho
no ventre. Até Lana quase foi convencida pela sogra de que não tinha
condições para cuidar de uma criança: "Não podemos dar-ta. Não tens
casa, não tens dinheiro, como vais tu criá-la?" Ninguém no hospital nem
nos serviços de proteção de menores desconfiou que estaria a ser usada
uma falsa identidade. Lucia assinou os documentos que eram necessários.
Sem o consentimento de Lana, a bebé foi deixada no hospital e
posteriormente adotada, num processo que nenhum tribunal terá coragem de
reverter. Lana foi proibida pelos sogros de procurar a filha.
Aproveitando
o internamento, Lucia impôs-lhe ainda que colocasse um implante
anticoncecional. Marius queria continuar a violá-la, pelo menos uma vez
por semana, sem riscos de a voltar a engravidar. Naquela altura, já a
própria Lucia carregava também uma barriga visível. Era preciso que a
nora estivesse disponível para cuidar do seu bebé.
Como
aliás viria a acontecer desde os primeiros dias, quando o levou para o
quarto de Lana. À primeira palavra, foi a ela que chamou "mamã".
Este
foi um dos episódios que mais chocou o procurador do Tribunal de Santa
Maria da Feira, quando acusou Lucia e os dois Marius, pai e filho, de
centenas de crimes de tráfico de pessoas, violência doméstica,
escravidão e violação agravada, em janeiro deste ano.
O
magistrado não teve meias palavras para exprimir a dor que infligiram à
vítima: "Fizeram-no obrigando-a a sujeitar-se à servidão doméstica,
obrigando-a a abandonar a filha, provocando-lhe dores, privação de
liberdade, profunda tristeza, agonia, desespero e insegurança,
reduzindo-a à condição de escrava." Lana não pôde ser nada. Nem criança,
nem adolescente, nem filha, nem mãe.
A LIBERDADE
Chamo-me Lana. Tenho 17 anos, não sei quando serei maior de idade. Vim para Portugal aos 12. Comecei ontem a aprender a ler e a escrever.
Lana
está finalmente perante o juiz do Tribunal de Família e Menores, que
não tem dúvidas de que passou por graves violações dos direitos humanos
quando lhe negaram o direito à escolaridade, à saúde, à identidade, a
ter um filho. Como pode alguém sobreviver a tudo isto? Ao triplo
abandono de uma mãe, ao roubo de uma filha, a uma infância e
adolescência resumidas a uma vida de pobreza, agressões, abusos e
escravatura? Lana é um prodígio da superação e do triunfo. Um caso raro,
garantem as equipas da instituição que a ajudam há meses a construir um
projeto de vida.
Podia
ter-se tornado muda e apática, mas fala pelos cotovelos. O mais certo
era ser desinteressada, desatenta, mas não é isso que se percebe quando
fala português e usa certeiramente os provérbios. Podia ser amarga e
desconfiada, mas distribui abraços pelas técnicas como se as conhecesse e
as amasse desde sempre. Era previsível que fosse sisuda e triste, mas
não é isso que se vê quando se ri com os olhos, com as bochechas e com
os dentes.
Meses
depois de ter deixado a casa de Lucia e Marius, e perante as ameaças
contínuas dos agressores, a PJ decidiu apertar as medidas de segurança,
dar-lhe o estatuto de vítima de tráfico de seres humanos e
reencaminhá-la de um lar de infância e juventude para uma casa-abrigo de
localização secreta, onde permanece até hoje. Periodicamente são
definidas medidas para que se mantenha a salvo. Neste momento, por
exemplo, não pode frequentar certos locais, publicar fotos suas, nem
deixar-se fotografar em grupo.
Em
julho, o Tribunal de Santa Maria da Feira deu como provada a escravidão
continuada e condenou Marius a sete anos e meio de prisão; Lucia levou
sete anos e nove meses. O outro Marius, marido forçado de Lana, ainda
não foi julgado por se encontrar em paradeiro incerto. Está pendente um
mandado de detenção europeu. Na leitura do acórdão, o juiz João Grilo
olhou Marius e Lucia nos olhos e disse-lhes: "O que vocês fizeram a esta
criança foi torná-la uma escrava. Era vossa escrava. Não tinha
liberdade, nem autodeterminação. Tiraram-lhe tudo, até um filho." A
primeira coisa que Lana fez quando chegou à casa-abrigo foi mudar de
aparência até ficar irreconhecível.
Por sua iniciativa, mudou a maneira de vestir, largou as saias, jogou fora os colares e as argolas.
Agora
prefere calças: "É muito mais fiiiixe!" Depois, quase provocou um susto
às psicólogas quando apareceu, toda contente, de cabelo ondulado
cortado a eito e uma franja às farripas. E no dia seguinte, que vida
própria ganharia aquela franja?, perguntavam-se as mais experientes.
Lana, que não saía do espelho, não se importou. Se corresse mal, mudava.
Agora já podia mudar as vezes que quisesse.
Os progressos são enormes, mas não é justo dizer que não sobraram marcas dos anos de escravidão.
Ainda
hoje toma medicamentos todos os dias e é assombrada com pesadelos todas
as noites. A mãe tornou-se um tema proibido, para não ficar mais
nervosa antes de dormir. Nos primeiros meses, parecia um bicho. Era
agressiva, respondona, falava muito alto. "Ensinaram-me a ser
bem-educada", diz, muito séria, sem que haja qualquer ironia na sua
frase. "Fui aprendendo. Na minha outra vida não estava habituada a isto.
Gritavam
comigo por tudo e qualquer coisa, e eu respondia. Agora ensinam-me como
comportar-me." É muito mais do que isso. "Depois de tudo o que passei,
estar aqui é muita felicidade.
Não quero o meu mal para ninguém.
Agora
ajudam-me a construir uma vida", diz, e larga um sorriso tão grande,
tão grande, que os olhos quase tocam nas maçãs do rosto.
Na
escola que frequenta de segunda a sexta aprende as letras e os números
como quem começa agora, e também artesanato, cerâmica, e as atividades
da vida diária, como limpar uma casa ou cozinhar ter sido escrava metade
da vida não significa que soubesse realmente fazê-lo. Descobriu dotes
para cozinhar comida portuguesa e um talento especial para a costura: ao
fim da primeira aula, fez na perfeição as bainhas de uns cortinados.
Sabe que a casa-abrigo é um lugar temporário, mas não teme o que virá. O que mais quer é um emprego.
"Gostava
muito de arranjar uma vida, uma casa para mim. Quero muito, muito
trabalhar. Podia ir para um café, ser ajudante de cozinha ou cuidar de
bebés ou crianças." Diz que na casa-abrigo aprendeu "as coisas boas da
vida", ganhou uma avó e a tal mãe emprestada de quem não larga a mão
durante a conversa e que quase sufoca quando a aperta nos seus abraços.
Quando saiu da casa de Lucia e Marius teve um primeiro instinto de ligar
para a mãe, na Roménia. Depois, mudou de ideias.
Não podia arriscar que ela a vendesse a outro homem.
O passado é um caminho feio que não quer voltar a ver.
Mas
não é a falar do passado que a voz lhe foge para os soluços. Lana não
se afunda em tristezas nem em revoltas: já perdeu metade de uma vida
nelas. A voz embargada só aparece quando explica quem é agora. "Quem
sou? Hãããã. Sou uma pestinha. Gosto muito da minha vida nova e da minha
família. Gostam muito de mim e eu gosto muito deles. Sinto-me muito
feliz." E os olhos, brilhantes como cálices, faíscam de alegria e
lágrimas. "Agora estou aqui, tenho uma vida boa, e aprendo muito com
eles." Na nova vida, a primeira em que é livre, Lana fez uma descoberta:
"Tudo o que eu queria, tenho uma família." Di-lo e não sabe se há-de
sorrir ou chorar mais, enquanto puxa a nova mãe, Madalena, para o seu
ombro e lhe diz bem alto: "Gosto muito, muito de ti." A um mês da festa
de Natal, insiste em falar do presente que vai preparar para o "amigo
segredo" (amigo secreto) e jura que este ano não se vai descair e contar
antes de tempo quem é. Como deixou a antiga vida a uns dias do Natal de
2014, o turbilhão era tal que nem deu pelo passar da época. No ano
passado, já nesta casa-abrigo, teve o primeiro Natal a sério: à noite,
antes de ir para o quarto, espreitou a árvore e não viu nada; ao
acordar, pela manhã bem cedo, descobriu uma montanha de presentes aos
pés do pinheiro e acreditou que existia mesmo um Pai Natal. À sua
maneira, ainda foi a tempo de ter uma infância feliz.
Lana tem 19 anos e esta noite não vai ter de dormir com um homem que não escolheu.
[Por
razões de segurança e motivos éticos, o nome da vítima foi alterado
nesta reportagem.] Se julga conhecer vítimas de tráfico de seres humanos
e precisa de aconselhamento, ligue para um destes números.
Equipas APF (Associação para o Planeamento da Família) Norte: 918654101/ APF Centro: 918654104/ APF Lisboa: 913858556/ APF Alentejo: 918654106
Equipas APF (Associação para o Planeamento da Família) Norte: 918654101/ APF Centro: 918654104/ APF Lisboa: 913858556/ APF Alentejo: 918654106
* Parece um argumento macabro para um filme de terror, simplesmente é uma verdade de terror.
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