Mariquice linguística
Considero que todas as pessoas, independentemente da cor, género, religião ou orientação sexual podem ser achincalhadas. Sou pela igualdade
Como, por razões de saúde, não estou presente nas chamadas redes
sociais, conto com vigilantes florestais amigos para me manterem
informado acerca dos incêndios que vão lavrando por lá. Tendo sido esta
semana responsável por um, ainda que de pequena dimensão, desejo
aproveitar este momento, em que os indignados não dedicaram ainda a sua
indignação a outro alvo, para os indignar ainda mais.
O escritor e
crítico literário Eduardo Pitta (EP) comentou certo passo de uma das
centenas de entrevistas que tenho dado a propósito do lançamento de um
livro. O entrevistador falou--me de uma rábula antiga em que se usavam
palavras como "coxo" e "mariconço". E eu disse que esse sketch, bem
recebido na altura, hoje seria, provavelmente, considerado inadmissível.
As
observações de EP vieram demonstrar que eu tinha mais razão do que
pensava. Diz ele: "(.) em Portugal, (.) os homossexuais masculinos
dividem-se em três grupos: homossexuais, gays e bichas. (.) não sei o
que é um mariconço. (.) Mas RAP lamenta não poder achincalhar os
mariconços." Estou a tentar reproduzir com rigor e honestidade as
palavras de EP um cuidado que, infelizmente, ele não teve comigo: eu
nunca lamentei não poder achincalhar os mariconços (até porque, na
verdade, posso e considero, aliás, que todas as pessoas,
independentemente da cor, género, religião ou orientação sexual podem
ser achincalhadas. Sou pela igualdade).
O sketch em causa, curiosamente, não achincalhava ninguém.
A
rábula não tinha (mas talvez devesse ter) a clássica indicação "nenhum
mariconço foi magoado durante a filmagem deste sketch", para sossego de
todos. Para situar os leitores que têm o bom gosto de não acompanhar o
meu trabalho, explico melhor: era uma rábula sobre a enunciação de
palavras tais como "coxo", "vesgo", "fanhoso" ou "mariconço", num tipo
de discurso a que não deviam pertencer. No sketch, uma personagem não
domina certos códigos de linguagem e outra corrige-a. Dito assim parece
aborrecido, mas o visionamento da rábula acaba por demonstrar que é
mesmo aborrecido.
Ora, hoje não interessa o contexto nem a
intenção com que uma palavra é dita: a sua simples enunciação é uma
ofensa um achincalhamento. Nos EUA, livros como Não Matem a Cotovia
estão a ser banidos dos programas e das bibliotecas por conterem a
palavra "nigger". Não importa se o objectivo é denunciar o racismo ou
praticá-lo: aquela palavra é interdita.
Este apetite para excluir
palavras do espaço público tem várias causas. Vou começar pela palavra
"coxo" (embora a comunidade coxa tenha mantido a este propósito o
silêncio sensato do costume).
Decidiu-se que pessoas como os
coxos são demasiado frágeis para aguentarem o peso da palavra "coxo". Há
que almofadar o vocábulo, para os proteger. Talvez o caso mais
interessante seja o da palavra "velho".
Para salvar os velhos do
opróbrio da palavra "velho", o termo foi substituído por "sénior". Mas
este ano, o Departamento de Excelência Inclusiva da universidade do New
Hampshire concluiu que substituir a palavra "velho" por um eufemismo
poderia indicar que estamos a colocar uma carga negativa na velhice (o
que, aliás, é óbvio).
De modo que resolveram banir a palavra "sénior" e reabilitar a palavra "velho".
A
palavra "mariconço" é rechaçada por outras razões, entre as quais a
seguinte: há uma compulsão actual para a literalidade que leva a que
certas pessoas acreditem que as palavras têm um único significado. É um
entendimento infantil do funcionamento da linguagem, mas é o argumento
de EP: "mariconço" designa um homossexual masculino, e ele só não sabe
que lugar lhe atribuir na sua taxinomia de homossexuais. No meu mundo,
no entanto, as palavras têm mais do que um significado.
Quando digo às
minhas filhas que não sejam maricas, não estou a pedir-lhes que não
sejam homossexuais masculinos. Elas sabem, aliás, que, se quiserem ser
homossexuais masculinos, o pai não se opõe. Do mesmo modo, quando digo
que "estou fodido", não pretendo transmitir a ideia de que as relações
sexuais são desagradáveis, embora o diga sempre em tom de lamento.
Quando a comunidade homossexual escolheu, e bem, adoptar a designação
"queer", transformou um insulto num emblema. É uma das características
que distinguem as palavras dos actos: uma ofensa pode passar a ser uma
honra; um soco nunca deixa de magoar. Quando Mark Ashton organizou o
"Concerto dos Pervertidos", não contribuiu para perpetuar a ideia de que
a homossexualidade é uma perversão ajudou a destruí-la. Ashton é um
herói pessoal porque, na minha qualidade de mariconço, nutro especial
respeito por homossexuais que não são dados a mariquices.
Mas,
infelizmente, agora vivemos num tempo em que até os escritores parecem
ter esquecido que a linguagem é mais complicada do que parece. E isso
foi a única coisa que eu lamentei.
IN "VISÃO"
21/12/16
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