Abstinência sexual e morte
Desculpem lá, mas há ideias que são criminosas. Há propostas políticas que são criminosas.
A notícia acima custou-me a engolir; cheguei a pensar que era um spoof qualquer. Parece que não.
Tenho visto pessoas, ironicamente, a perguntar se voltámos ao século
XVIII ou XIX. Mas não é historicamente a melhor altura para fazer
comparações. Na verdade, mais facilmente poderíamos era estar em 1996,
nos EUA, quando o Congresso aprova, à altura, 250 milhões de dólares para financiar programas de “educação sexual” só com abstinência. Ou em 2004, quando a administração Bush Jr. colocou de lado 170 milhões de dólares para o mesmo fim.
Mas porque é que eu chamo a isto de “proposta criminosa”? Bem…
A investigação mostra, por exemplo, que estes programas incluem
informação cientificamente errada e que promove estereótipos de género
nocivos, que não ajuda em nada a baixar a incidência do VIH/SIDA (aqui, também aqui, também aqui), que geralmente não alteram em nada os comportamentos sexuais das pessoas jovens (aqui), e por aí em diante…
Ou seja: na melhor das hipóteses, a educação sexual para a abstinência é comprovadamente inútil ou, então, activamente prejudicial.
Sabem o que é que funciona para impedir gravidezes não desejadas, e abortos? Espanto dos espantos: contraceptivos!
Pessoas, não há outra forma de colocar a questão: os jotinhas do PP
querem colocar a sua vontade ideológica de pureza à frente da própria
saúde e bem-estar das pessoas que dizem defender e representar. Isto é criminoso.
E vocês dizem-me: “Mas, oh Daniel, esses estudos são dos Estados
Unidos; nós estamos em Portugal”. Toda a razão. Olhemos então para
Portugal, sim?
Em Portugal, 93% das acções de Educação Sexual nas escolas são feitas por elementos externos às escolas (aqui),
o que frequentemente se traduz numa aprendizagem fragmentada e
desconexa, sem estrutura nem acompanhamento – sendo isto dados de apenas
metade das Escolas que foram convidadas a submeter informação. Portanto, o panorama pode ser ainda pior. A ajudar, claro,
temos ainda em Portugal Associações de Pais que têm estado fortemente
envolvidas em bloquear o acesso dos educandos e educandas a recursos de
saúde sexual, acreditando falsamente (aqui) que isso os ajuda a iniciar a vida sexual mais tarde.
Muitos destes pânicos se sustentam numa ideia totalmente ficcional: a de que as pessoas jovens cada vez iniciam a sua actividade sexual mais cedo. Não… é… verdade…! O número de jovens que afirma já ter iniciado a sua vida sexual tem vindo a descer nos últimos anos (de 23,7% em 2002 para 21,8% em 2010 e 12,8% em 2014 – aqui e aqui).
Sabem o que é que está associado com um início mais tardio da
actividade sexual? A existência de Educação Sexual de qualidade e um
maior nível geral de escolaridade.
Portanto, repitam comigo: A “educação” para a abstinência não existe.
Da mesma maneira que água seca, fogo frio e vida morta também não
existem. Da mesma maneira que, nas escolas, não se ensina o
não-homicídio, ensina-se o respeito pela vida humana.
O que existe, isso sim, é uma campanha dos jotinhas do CDS-PP para prejudicar activamente e propositadamente a saúde (sexual e não só) das pessoas jovens, com especial impacto em raparigas e pessoas não-heterossexuais. A abstinência sexual na “educação” é uma política de morte.
Dirão que a JP já “esclareceu” a questão, e que “apenas” queria que
existissem referências à abstinência, a par do resto do conteúdo. Um
olhar mais atento para a proposta tornada pública revela que tal não é
verdade.
No seu primeiro ponto («Liberdade para educar»), é dada primazia à
«Família», para que a escola não «corra o risco de contrariar ou
desautorizar a esfera de valores que esta reservou para a educação dos
seus filhos». Num país como Portugal, em que os pais têm pouquíssima
literacia sobre sexualidade, este ponto deveria em boa verdade chamar-se
“Liberdade para não educar”. A investigação demonstra claramente: os
jovens não vêem e não têm nas famílias um bom recurso para educação
sexual – permitir que as famílias bloqueiem o acesso a formação escolar é
uma violação directa dos Direitos da Criança.
No seu terceiro ponto, a JP fala ao mesmo tempo da «dimensão
biológica e natural», mas nega a fluidez sexual que tem vindo a emergir
na investigação (aqui), ou o facto de que, ao nível dos cromossomas, existem cinco sexos, não dois (aqui). …Claro que, no topo do documento, a JP tem problemas, supostamente, com um discurso demasiado científico – a não ser quando acha que este lhe convém.
Eu poderia, honestamente, continuar, e desmontar todos os outros
detalhes da proposta. Mas a verdade, mesmo depois do esclarecimento nas
redes sociais da JP, continua a mesma: a JP propõe inserir no currículo
algo que, está demonstrado, em nada ajuda as pessoas jovens. A JP propõe
dar às famílias o poder de manter as pessoas jovens na ignorância.
Propõe tornar a interrupção voluntária da gravidez um estigma.
Recordo uma entrevistada, no contexto do meu doutoramento, que
necessitou de ver imagens pornográficas para descobrir que as vulvas são
diferentes entre si – para usar as suas palavras, que umas são “innie” e outras são “outie”.
Ou as várias pessoas que me disseram, em entrevista, que tinham medo –
medo de que a família descobrisse que tinham andado à procura de
informação sobre sexo e sexualidade.
Sabem uma coisa? Faz imensa falta tratar de forma central e
aprofundada o conceito de “consentimento informado” e “pressão social”,
em Educação Sexual. Mas nenhuma destas coisas pode ou deve ser
confundida com “educação para a abstenção”, com educação para a
ignorância, com educação para a transfobia e para o sexismo.
Repito: a “educação” para a abstinência da proposta da JP é uma política de morte.
* Professor Universitário
IN "GERINGONÇA"
22/12/16
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