Luz de outono
Como se faz uma cidade? Como se religa,
comunica, diferencia e anima uma comunidade plural em torno de uma
referência comum cujo corpo é volátil, instável, uma identidade aberta
em permanente procura de si? Toda a cidade é um lugar que ultrapassa o
lugar físico e material onde se inscreve.
Toda a cidade é um cosmos e
uma constelação de um cosmos maior onde a célula mais pequena tem uma
relação de pertença com o corpo, sem mimeticamente se confundir com ele.
Na aurora do inverno, o Porto debate no Fórum do Futuro as Ligações.
Ligar
o quê a quê? Porquê? Como? Não há uma resposta objetiva e clara; não há
um centro único de discussão; não há sequer o desejo de uma conclusão,
"mesmo que provisória". Há, sim, ligações, e as ligações são a essência
da cidade.
Discutir ligações "é um
grito contra a incomunicabilidade que cresce e, sem darmos por isso, se
instala no tumor social" (Tolentino de Mendonça, "Expresso", 3 set,
2016), é inventar pontes imprevisíveis comunicando saberes, disciplinas
(as neurociências com a arte, a arquitetura com a divindade), misturar
linguagens e abordagens numa visão horizontal, estar no veio da ligação,
"entrelugares", "é ousar, arriscar, agarrar o espírito do tempo (o
zeitgeist) e não glosar outros tempos" (Paulo Cunha e Silva, 1999:18)
para articular em conjunto, em voz alta, interrogações como as que
inquietam Dominique Wolton: será que o fim da distância física revela a
extensão da distância cultural? E como é que num mundo onde tudo é
visível, mas onde cada indivíduo continua cioso da sua identidade
cultural, pessoal e comunitária, pode corresponder ao desafio deste
início de século evitando a guerra e reconhecendo realmente a
diversidade, a aceitação dos deveres de uns e outros e organizar a sua
coabitação cultural?" (in, programa Fórum do Futuro). Ali Smith recorda
que "nunca existimos num só tempo, nem temos uma identidade fixa" e para
Laraaji o segredo está no riso: "rir mantém o corpo aberto,
vulnerável", exposto ao Mundo, e esta abertura é condição essencial para
o encontro com outro; encontro autêntico, vivido e refletido.
Sob a luz dourada do outono os dias alongam-se no corpo contínuo das ligações. Passar de um Mundo centrado sobre si (uma cidade ou uma vida recolhida, escondida sobre si) para o espaço cósmico onde cada célula vive é restaurar, no debate livre, o sentido político de uma cidade que se pensa e faz cosmopolita.
* PRESIDENTE DO POLITÉCNICO DO PORTO
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
04/11/16
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