Livraria no vão de escada
QUELIMANE, MOÇAMBIQUE Estas livrarias improvisadas são um mistério para mim. Não sei onde compram, e sei, que quase sempre não vendem. E mesmo assim cá andam de escada em escada
Nesta minha cidade não existem livrarias.
Bem não é bem verdade, existe um cibercafé que tem umas três prateleiras
com uns dez livros. As verdadeiras livrarias existem em vãos de escada e
andam. Tem pernas. Não andam muito, mudam de vão de escada para vão de
escada, mas sempre as mesmas duas ruas. A andança pode ser forçada pela
ocupação antecipada por um vendedor de sapatos, ou um outro qualquer
vendedor de qualquer coisa ou pelos normais incidentes nos prédios com
canos que rebentam e água faz um rio – inimigo dos livros, claro está.
Quando rebuscava estas palavras googlei ‘leitura
em Moçambique’ para tentar dizer alguma coisa sobre o que os estudiosos
do assunto dizem. Encontrei notícias de conferências em Maputo, em
quase todas os oradores concluem que existe falta de interesse pela
leitura, queixam-se. Acrescentam ao lamento que os livros estão caros e
que o acesso ao livro é difícil. Difícil? Ri do uso da palavra difícil.
Difícil é uma palavra simpática para o estado da coisa. Aqui nem caro,
nem barato. Simplesmente não existem.
Quando
encontro uma das livrarias de vão de escada compro sempre qualquer coisa
para ter oportunidade de falar com o vendedor. Hoje encontrei o meu
vendedor preferido, o Gonçalves. Não sei a idade dele, mas é mais adulto
que aparenta. Falamos sobre os livros. Na maioria são livros para o
ensino secundário, e um ou dois romances, e quase sempre um velho livro
que se falasse contaria como ficou cá sozinho mais de 40 anos, depois
dos seus donos portugueses terem partido com a independência.
O
meu interesse prolongado atrai sempre um ou dois potenciais clientes
que quase sempre procuram ‘Paulina Chiziane’, a escritora moçambicana
que escreveu sobre esta terra e que por isso os zambezianos acham ser a
escritora deles. ‘Paulina está difícil. Não temos há muito tempo’, é a
resposta. Os dois jovens falam entre eles do livro que leram da Paulina.
Pela maneira como falam não sei se leram ou se apenas sabem a estória. O
Gonçalves anda há pelo menos dois anos na 11ª classe, ou então já se
esqueceu que me diz há dois anos que anda nessa classe.
Ao
ver os livros lembrei-me da minha vizinha que estuda na 12ª classe.
Vejo-a sempre a estudar com umas cópias sujas e amareladas. A primeira
vez que lhe perguntei pelos livros recebi como resposta uma gargalhada,
‘estão aqui’, e mostrou as tais páginas amarelas e com manchas. Eu
fiquei espantada por ela não ter livros e ela ficou espantada por eu ter
ficado espantada por ela não ter livros. Pacientemente lá me explicou
que nunca teve livros. Os livros são fotocópias de fotocópias. Riu-se da
minha ingenuidade e explicou-me que o próprio professor não tem livros.
Como não encontrei para a classe dela, comprei-lhe um dos livros para a
9ª classe.
O Gonçalves também aceita
encomendas, mas sem compromisso. Disse-me que talvez para a semana
tivesse para a 12ª. Pergunto sempre apesar de conhecer a resposta ‘oh
Gonçalves onde arranjas os livros?’ e o Gonçalves tal como todos os
outros livreiros dizem-me sempre ‘compro por aqui’ e nunca me olham
quando dão esta resposta. Como desviam o olhar, imagino que deve existir
um sítio onde chovem livros. Roubar não roubam. Nunca ouvi tal coisa
por estes lados. Aliás oiço sempre ‘livros ninguém rouba!’ quando tento
voltar ao carro porque deixei livros à mostra. E mesmo que roubassem não
teriam onde….
Esta alergia aos livros
dos ladrões, faz-me lembrar uma das lições que aprendi há anos com um
professor do Gana que me ensinou a fazer a mala para, no aeroporto,
passar com mandioca e peixe frito (encomenda dele), ensinou-me ‘em
África se trouxeres comida, colocas a comida sempre debaixo dos livros,
mal veem os livros deixam-te passar’. Experimentei pelo menos duas vezes
e funcionou apesar do cheiro a peixe passar em muito os livros.
Mas
voltando às livrarias, estas livrarias improvisadas são um mistério
para mim. Não sei onde compram, e sei, que quase sempre não vendem. E
mesmo assim cá andam de escada em escada. Os preços ao contrário das
livrarias de Maputo, são quase sempre fixos entre 200 a 300 meticais.
Uma empregada doméstica ganha 3000 meticais. Talvez aqui sim, se aplique
a palavra ‘difícil’, quem ganha 3000 dificilmente pode gastar 300 num
livro, mesmo assim, ainda acho que a melhor palavra é impossível.
IN "VISÃO"
29/09/16
.
Sem comentários:
Enviar um comentário