ESTA SEMANA NA
"VISÃO"
"VISÃO"
Os segredos da Opus Dei:
Chicotadas e cilício para
sofrer como Cristo
Na obra Opus Dei, Eles estão no meio de nós, o jornalista Rui Pedro Antunes recorre a "relatos impressionantes de quem conseguiu sair" para desvendar alguns mistérios d'A Obra
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É com o mote "se não o podemos vencer, vamos, pelo menos, torná-lo mais visível" que Rui Pedro Antunes revela, em Opus Dei, Eles estão no meio de nós,
da editora Matéria Prima, alguns mistérios da organização religiosa,
desde as listas de filmes e livros proibidos – nomeadamente, de José
Saramago e Eça de Queiroz –, os castigos, os locais onde vivem, e o
poder de influência que têm na banca, na política e no ensino.
O
autor, jornalista do Observador, passou antes pelo Diário de Notícias,
onde fez parte do grupo fundador da equipa de Grande Investigação. Já
publicou vários livros sobre sociedades secretas, entre eles, Os Planos de Bilberberg para Portugal e O Poder da Maçonaria em Portugal.
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Excerto do livro Opus Dei, Eles estão no meio de nós de Rui Pedro Antunes
“Bendita seja a dor. Bendita seja a dor, santificada seja a dor...
Glorificada seja a dor!”
Caminho: 208
No
início, era a dor. João levantou-se, carregado de culpa, e depois de
ter relações sexuais com a namorada, pegou nos seis bagos de milho que
trazia num estojo de camurça. Colocou-os em forma de triângulo e
ajoelhou-se sobre eles a rezar qualquer coisa parecida com uma
ave-maria. A mortificação corporal tem várias formas –algumas mais ou
menos violentas.
Ajoelhar-se sobre o milho não é a prática mais
comum. E muito menos depois do sexo, até porque os numerários, as
numerárias e os agregados são, obrigatoriamente, celibatários. Relações
sexuais, nem pensar. Na obra, o sofrimento e as penitências são
incentivados de forma a que os seus membros sofram como Jesus sofreu,
sendo o ato entendido como uma dádiva a Deus.
Como é normal no
Opus Dei, embora haja liberdade no tipo de mortificação que cada um
aplica, há duas formas mais institucionalizadas, e também mais
habituais, de os membros se autopenintenciarem: o uso de cilício e a
chamada disciplina (chicotadas). Tudo autoflagelação, até porque como
está bem explícito em Caminho, a “Bíblia” do Opus Dei:
“Nenhum ideal se torna realidade sem sacrifício.
– Nega-te a ti mesmo.
– É tão belo ser vítima!”
Sofrer para ser herói
“Serviam”.
Após saltarem da cama com um piparote, sem ponta de moleza (“não sejas
mole”, aconselhou Escrivá), é em latim – língua morta, mas a favorita da
obra – que é dita a primeira palavra do dia dos numerários. Em
português e em linguagem do Opus Dei significa: “Servirei!”
Na
obra, chama-se a este ato “minuto heroico”, muitas vezes acompanhado por
um beijo numa moldura, quando há na mesa de cabeceira uma foto do
fundador Josemaría Escrivá de Balaguer.
Segue-se pelo menos
meia-hora de reza ainda antes do pequeno-almoço, sendo a Consagração a
Nossa Senhora uma oração tipicamente matinal, que começa precisamente
com um: “Ó senhora minha, ó minha mãe, eu me ofereço todo a vós, e em
prova da minha devoção para convosco vos consagro neste dia os meus
olhos, os meus ouvidos, a minha boca, o meu coração...”
E se o
pequeno-almoço também pode ter pequenas mortificações - como beber café
sem açúcar ou comer pão sem manteiga –, antes disso ainda pode haver uma
outra aproximação a Deus: o “duche frio”. “Somos incentivados a tomar o
duche de água fria, mesmo que seja no inverno mais rigoroso”, conta um
dos antigos membros.
Mas a prática (diária) mais violenta é mesmo
o uso de cilício na coxa durante duas horas. “Torna-se tão habitual,
que ao fim de uns tempos já nem dói, já nem pensamos, é quase tão normal
como lavar os dentes”, diz o mesmo numerário. O cilício é uma corrente
de metal, uma espécie de arame farpado soft, que se crava na
pele e que tem como objetivo criar desconforto. Quando retirado o arame
desconcertado, o sangue encarrega-se de tatuar a perna. A organização
defende-se, dizendo que não é suposto fazer sangue, mas há relatos de
que Escrivá de Balaguer se orgulhava de deixar as sanitas ensanguentadas
sempre que se sentava nelas. Por norma (e é uma regra escrita), o
cilício deve ser utilizado todos os dias, exceto ao domingo.
Mas
há outros rituais igualmente violentos. Um deles é a “disciplina”, que
deve ser aplicada uma vez por semana, e consiste em os membros
massacrarem as nádegas com um pequeno chicote de cordas com nós cegos
nas pontas. A organização deita água na fervura. O responsável pelo
gabinete de comunicação do Opus Dei em Portugal, Pedro Gil, desvaloriza
as penitências dizendo que “não são obrigatórias e nada têm a ver com as
chicotadas relatadas no livro e no filme de Dan Brown”. Não desmente,
no entanto, a existência destes rituais, embora garanta que “os membros
certamente se riem quando ouvem essas descrições [de que existe muita
dor e provoca sangue]”.
Um contabilista do Porto, João Pinto -
que apitou (termo utilizado para definir o dia em que se aderiu ao Opus
Dei) com 22 anos e foi agregado do Opus entre 1976 e 1992 –, aceitou dar
a cara para dizer que praticava a mortificação corporal, que diz não
ser “uma coisa do outro mundo”. Admite, no entanto, que as práticas eram
incentivadas.
Um outro ex-membro, que não se quis identificar,
explicou que saiu do Opus Dei por perceber que “o que era praticado dia a
dia chocava com os direitos fundamentais da pessoa humana”.
No
entanto, o antigo numerário considera que “quaisquer chicotadas ou
cilícios não eram nada comparados com a violência psicológica a que os
membros são sujeitos”.
E conclui: “Sentíamos que éramos um zero à
esquerda com todas as obrigações que tínhamos e com a liberdade que não
tínhamos». O mesmo ex-membro utiliza uma metáfora para explicar como
são tratados os membros numerários nos centros: “São como os alimentos
no supermercado que são colocados em câmaras com pouco oxigénio para se
aguentarem mais.”
Paulo Andrade foi numerário
dos 15 aos 33 anos, tendo abandonado a obra em 1993. Desde 2004 tem sido
o seu principal crítico, pelo menos dos que não se escondem no
anonimato. Diz que não tem mais a acrescentar ao que disse nos últimos
anos. Em dezembro de 2007, confessou à revista Sábado como o
clima era verdadeiramente controlador e sexista: “Toda a gente vigia
toda a gente. Parti uma perna a jogar futebol e era a minha irmã que me
levava à fisioterapia. Fizeram-me uma correção fraterna, porque não era
bom um numerário entrar num carro com uma mulher.”
Os chicotes e
os cilícios podem ser pedidos aos membros da obra ou comprados, por
exemplo, no Convento de Santa Teresa, em Coimbra. A irmã Lúcia praticava
este tipo de mortificações, que continuam a ser incentivadas entre as
carmelitas coimbrãs. Há membros da obra que ali se dirigem para comprar
estes instrumentos de dor que podem também ser adquiridos na internet e
custam entre 31 e 101 euros.
A mortificação corporal não se fica,
no entanto, pelo cilício e a disciplina. Há pequenas mortificações
praticadas no dia a dia, como, por exemplo, beber o café sem açúcar, não
comer entre as refeições ou não pôr manteiga no pão.
O próprio
fundador tem vários escritos a incentivar aquilo que chama pôr “uma cruz
em cada prato” e o próprio – quando era vivo – tentava espaçar o tempo
em que bebia água ao longo do dia (para sentir sede) e às refeições
servia-se mais do alimento de que menos gostava e menos do que mais
gostava.
No Caminho que quis impor aos membros, tem
naturalmente várias máximas dedicadas à mortificação; numa sobre o
pequeno-almoço, dá mesmo o exemplo da manteiga:
O juiz conselheiro jubilado, Messias Bento,
atual membro supranumerário, defende que a mortificação corporal “é um
ato voluntário que cada um quer oferecer a Deus” e considera que
“ninguém se devia impressionar com este tipo de práticas”. Embora
pareçam atos medievais, o antigo juiz tenta até justificá-las com
práticas da sociedade moderna: “Se ninguém se impressiona que se façam
dietas e sacrifícios para que se fique elegante, porque se hão-de
impressionar que se façam coisas similares como ofertas a Deus?”
Messias
Bento dá ainda outros exemplos de mortificação que os membros podem
oferecer a Deus: “Para um fumador, pode ser não fumar durante a manhã ou
não beber vinho a uma das refeições”. O antigo juiz ressalva ainda que
“as mortificações não são feitas por puro masoquismo, são uma oferta a
Deus”.
Estas práticas de mortificação estão longe de ser
consensuais na Igreja Católica e – mesmo no Opus Dei – nem todos as
defendem. O antigo presidente da Assembleia da República João Bosco Mota Amaral
confessa que, embora as compreenda, não é adepto deste tipo de
práticas: “Sou mais pela alegria. Pela manhã do domingo de Páscoa.”
* O malabarismo do martírio, alguém compra???
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