09/10/2016

ANTÓNIO FREITAS DE SOUSA

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Guterres é bom para a Europa?

As tentativas, patrocinadas pela Comissão Europeia, de estancar a vinda de refugiados para a Europa nada têm a ver com humanismo mas apenas com cinismo.

Um dos primeiros dossiers que o novo secretário-geral da ONU, António Guterres – que por acaso do destino é português –, tem pela frente, é o dos refugiados das pantominas que a comunidade internacional anda a fazer no sítio do costume há pelo menos 150 anos: o Médio Oriente. Desgraçadamente para ele, a tendência que prevalece na Europa é a de aceitar refugiados. Mas atenção, só bons refugiados.

Enquadram-se neste grupo os refugiados que já não conseguem viver em cenários de guerra, mas que sejam originalmente uns democratas; e que, já agora, entendam como função sua suar as camisas para ganharem o pão que a Europa lhes vai dar, de preferência trabalhando nos lugares onde os europeus já não têm pachorra para trabalhar. Se forem médicos, melhor ainda: uma mulher-a-dias síria licenciada em medicina pode sempre dar uma ajuda com os miúdos lá em casa e um lixeiro afegão que seja, por exemplo, engenheiro mecânico, há-de ter facilidade em conduzir um camião de resíduos urbanos, mudar-lhe o óleo a cada 15 mil quilómetros e substituir as lâmpadas dos piscas quando isso for necessário.

O que deles se espera é que não teimem em manter os hábitos perniciosos que trazem lá da terra deles, coisas horríveis que a Europa nunca viu, como usar a cabeça coberta (era uma prática comum na Europa até há 50 anos atrás, mas isso agora não interessa nada), a mutilação genital (aconselhada por centenas de médicos europeus até aos primeiros anos do século XX para tratar aquilo a que chamavam os excessos sensuais de algumas mulheres, mas isso agora não interessa nada) e todo um vasto conjunto de práticas mais ou menos conhecidas.

A chatice é que António Guterres – que, tendo sido Alto-Comissário da ONU para os Refugiados – sabe do assunto muito mais do que se imagina. Além disso, já deu mostras de não apreciar por aí além essa preferência europeia pelos refugiados de primeira qualidade e, muito menos, a triste decisão de uma série de Estados europeus de se munirem de muros, arame farpado e metralhadoras para se defenderem das famílias mutiladas, exangues e ofendidas que todos os dias esbarram, boquiabertas, no cimento ainda por secar.

Muito provavelmente, uma das primeiras coisas que António Guterres fará – mesmo que não seja publicamente – é explicar a esses países que as coisas não podem passar-se deste modo e que, ao contrário do que vai prevalecendo como teoria geral cada vez mais enraizada, não há hordas de perigosos terroristas a fazerem de conta que são refugiados. Guterres terá de explicar que as tentativas, patrocinadas pela Comissão Europeia, de estancar a vinda de refugiados para a Europa, mas não de estancar a produção de refugiados, nada têm a ver com humanismo mas apenas com cinismo, e que pagar à Turquia para gerir esse fluxo é o cúmulo impensável desse cinismo. Guterres terá de explicar – mesmo não sendo publicamente – que a imagem de uma criança de cinco anos afogada na rebentação mansa de uma praia europeia não deve gerar lágrimas, mas antes uma fúria imensa e, se possível, violenta contra a porcaria dos muros que estão a ser construídos na periferia do continente.

Neste quadro, o primeiro dossier que o novo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres – que por acaso do destino é português –, tem pela frente, obrigá-lo-á a praticar um sério e, se possível, violento puxão de orelhas aos europeus que continuam a achar que o resto do mundo é uma espécie de jardim zoológico cheio de bizarrias, sem se aperceberem que o resto do mundo está farto de um continente que não produz nada, não manda nada, não influencia nada, mas continua a pavonear-se na cena internacional como se, por cá, fôssemos todos, no mínimo, barões.

IN "OJE/JORNAL ECONÓMICO"
08/10/16

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