Despedida renitente
Não é nada fácil voltar a sentar-me na plateia do circo, sendo
uma outsider. Mas se a plateia rejubila, a corte se deslumbra e o país
condescende, resta-me, profissionalmente, continuar lá sentada.
1. “E hoje o nevoeiro, levantará?” A dúvida
paira, ancestral e permanente. E depois eis-nos a flutuar entre o hábito
antigo daquelas neblinas e a expectativa, invariavelmente incerta, de
que elas se dissipem, trazendo de volta o verão. “Mais logo, talvez …”,
dizemos uns aos outros, com uma ansiedade sempre reeditada e a
resignação de uma vida. Quem, dia após dia, não tenha o osso rijo e a
resistência sem mácula de um corredor de fundo, que procure outra
morada. Aqui adormece-se e acorda-se envolto em véu tão espesso que
quase ficamos privados do olhar. Há madrugadas em que o horizonte se
imobiliza numa translúcida mancha branca e manhãs de onde desapareceu o
jardim, tal a espessura do manto de nevoeiro que o cobre. Cortado por
vezes por uma ténue, tímida, teimosa luz, procurando passar por entre as
pesadas pregas do manto.
É o Oeste e sempre foi assim. Idiossincrasia caprichosa e singular.
Uma identidade própria feita de brumas e ar fresco. Neblinas matinais.
Nevoeiros. Cacimba. E, do longe, chega por vezes um fiozinho de maresia,
trazido do Atlântico pela humidade do cair da tarde.
Mas estou a ser injusta, este ano não foi bem assim. O verão, de tão
carnudo, tão farto, tão duradoiro, tão, como dizer? glorioso,
desnaturalizou-nos o Oeste: as neblinas mal pousavam, abrindo quase logo
as manhãs para ferventes dias. E até as noites, oh surpresa, tiveram
sempre as portas abertas para o calor que se demorava. Coisas nunca
vistas por aqui. Como se este verão tivesse havido entre o dia e a noite
o segredo de um misterioso compromisso.
2. Há gente, família, amigos, colegas, que me falam
com um tom de voz de fim de verão. Talvez porque as rotinas
reencontradas lhes ditem o fim obrigatório da “única estação” ou a
despedida dela, mas não vou deixar que isso aconteça comigo. Por
enquanto, não. É certo que há sinais que anunciam a fatal despedida,
como quando regressamos à rotina de todo o ano, voltamos a projectos com
data, ou simplesmente pensamos na vida. Ou ainda, mais simplesmente,
quando nos cruzamos com os despojos do verão — toalhas sem dono, óculos
de sol e de ver, chaves desconhecidas, escovas de dentes anónimas, roupa
estranha. Mas isso são os restos sem importância. Arrumam-se ou, com
(exaustivo) esforço, devolvem-se.
Do que falo é do verão como de uma vida que não quero que acabe e da
indispensabilidade de gestos e rituais que só a ela pertencem. Como o
inebriante perfume da esteva sobre os solos quentes, como o entrar no
mar, como o cheiro do campo no verão, como as vibrantes tonalidades da
paisagem, só intensamente reconhecíveis com a manhã já “levantada”. Como
Deus, tão audível nestes mares e campos e no silêncio que os envolve.
Com a vida fui aprendendo que pode haver vários silêncios e com o passar
do tempo, sobre cada um deles, fui adivinhando que temos de lhes
prestar a exacta atenção que eles nos reclamam.
3. José Tolentino Mendonça escrevia esta semana
(Expresso) que “há silêncios à espera de serem escutados”. Sim, há (e já
dei comigo muita vezes discorrendo sobre eles, e julgo que também aqui
mesmo.)
Discorrendo sobre esse inconfundível silêncio feito de grato
emudecimento, na praia, no areal ainda liso à minha frente, imaculado de
sinais e virgem de vida, qualquer que ela seja. A não ser talvez a do
Atlântico, a essa hora ainda coberto de bruma, quando a maré começa a
subir devagarinho, areia acima, e o oceano ensina as suas vagas a
dançar.
Divagando sobre o silêncio das tardes, que enlouquecidas de sol se
eternizam na quentura espessa do ar e no cheiro acre do calor.
Intérprete da natureza, caminho por ali com o tempo parado. Conheço
solitariamente cada árvore e cada curva destes campos, os canaviais, o
perfil da paisagem, os muros debruados a hortenses, a ponte que já não é
de madeira como quando éramos pequenas, as minhas irmãs e eu; a
barragem nova, os portões das casas, o rumor alto dos eucaliptos, o
cheiro a malva rosa.
Retendo o silêncio sussurrado das despedidas. No ocaso do dia, quando
os passos se tornam menos vigorosos, os gestos mais dolentes e já se
ouve o sincopado cantar dos grilos. E a lua é um longínquo ponto
brilhante que subitamente cresce e ganha forma, anunciando a noite que
se organiza sobre os povoados já adormecidos.
Distingo todos estes — e outros — silêncios, ouvindo-os, mesmo quando
o verão atinge o seu auge, mesmo quando há demasiada gente, mesmo
quando a casa explode de movimento. Mesmo assim. Talvez porque precise
deles, porventura por saber que “há silêncios à espera de serem
escutados”, como dizia o poeta. Mas certamente por adivinhar lá dentro o
rosto de Deus.
4. É claro que adiar assim, tão intencionalmente,
tão intensamente, o fim da “única estação” me embala a preguiça do
regresso e me entorpece a vontade. É que não é nada fácil voltar a
sentar-me na plateia do circo, sendo uma outsider. Mas se a
plateia rejubila, a corte se deslumbra e o país condescende, resta-me,
muito profissionalmente, continuar lá sentada. Reconhecendo que
provavelmente quem se engana sou eu e que a razão do meu desconforto só a
mim pode ser imputada.
IN "OBSERVADOR"
07/09/16
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