O drama do fim de férias
Poucos dias podem ser mais infelizes do que os últimos dias de Agosto.
Ainda são Agosto, ou seja, para a maioria das pessoas, são férias, e já
são os últimos, ou seja, anunciam o trabalho. Como o ciclo de vida das
pessoas é cada vez mais feito pelos media, ou melhor, por uma combinação
entre o que dá na televisão, o que aparece e se discute nas "redes
sociais" (que acaba também por ir parar à televisão), e em muito menor
grau, o que aparece nos jornais, principalmente no Correio da Manhã (e
que acaba também por ir parar à televisão), há uma simbiose profunda
entre a "produção de estados de alma" e o consumo desses mesmos "estados
de alma".
A agenda da silly season
A
agenda que molda estes últimos dias de Verão ajuda à depressão. Ela é
uma forma de síndroma de abstinência, é a difícil saída dos media de uma
coisa de que particularmente gostam, a silly season. Como o
futebol pára, não há muita política e a que há é demasiado ritual para
ter interesse, está toda a gente a banhos, as redacções entregues ao
pessoal menor – em bom rigor se fosse ao "maior" era a mesma coisa –,
resta a agenda de Agosto que é a mais estereotipada de todas as agendas
dos media: incêndios, saída das cidades para férias, retorno do fim das
férias, operações da GNR, prevenções da PSP quanto aos roubos nas casas
vazias, vinda dos emigrantes, ida dos emigrantes, e muita praia sob
todos os pretextos.
A construção da silly season
A partir daqui constrói-se a silly season, que pode ser mais ou menos animada. A silly season
é feita por uma combinação de "casos", crimes, acidentes, catástrofes,
para o exercício de uma coisa que a televisão faz muito bem, a
masturbação da dor. Este ano tivemos os incêndios, o terramoto em
Itália, o espancamento de um jovem por dois irmãos iraquianos, as
imagens do rapazinho sírio, e mais uns crimes avulsos, mais ou menos
espectaculares, com destaque para o assassinato de umas jovens
brasileiras, com o detalhe "gore" de terem sido deitadas numa fossa. O
pano de fundo, o cenário, são as "férias dos famosos", a mais inútil
manifestação da silly season, que funciona como a imagem inicial do ecrã
dos telemóveis.
São tudo notícias?
São
tudo notícias? Seriam tudo notícias se tivessem sido dadas como notícias
e não como entretenimento. Num caso, a história e as imagens que
correram o mundo do rapaz sírio, que tudo indica ser mais uma das
múltiplas manipulações oriundas da Síria, sobre as quais não há qualquer
verificação independente, mas que, quando aparecem, ninguém quer saber e
é só esperar até à próxima.
São tudo notícias? Seriam. Ao serem dadas como entretenimento, com os
longos directos inúteis, com a exploração de declarações mais ou menos
exibicionistas do género "eu não vi , mas foi o que me disseram", com o
tratamento das imagens, a mais "poderosa" manipulação que há, os media
são nestes meses a maior contribuição para o embrutecimento colectivo.
Os media e o Sol a pique. E como já há bastante, bem se podia evitar
esta dose. Infelizmente, como quase sempre acontece, ela é oferecida
também porque é desejada, numa simbiose de produto e consumo, que inclui
uma dose considerável de dopagem, de habituação e de "agarramento".
Embrutecer
Quando
se passa em Agosto por uma festa popular, podemos encontrar mil e uma
coisas boas, mas há também uma dose considerável de boçalidade, de
rudeza, de má educação, de péssimos costumes de egoísmo, pura procura de
auto-satisfação imediata, de violência à flor da pele, de embriaguez,
que começa nos adolescentes e continua nos adultos que já os fizeram à
sua imagem e semelhança. Assim, como se dizia antes, não se anda para a
frente.
E se há uma coisa para que não tenho paciência é para a
desculpa de que "lá está o intelectual que não participa nos prazeres
simples do povo". Tretas! Conheço um número considerável de intelectuais
que acha tudo isto muito bem, que justifica tudo o que se passa e
teoriza o bastante para legitimar tudo o que acontece. Não sou dessa
escola, e sempre achei que o pior que se pode fazer ao "povo" é puxá-lo
para baixo em vez de o tratar com a igualdade de o desejar mais "acima",
que é aliás o que qualquer pessoa decente, seja qual for a sua
educação, modo de vida e profissão, deseja para si e para os seus.
O que se passa neste infeliz País é que há demasiadas coisas a puxar
para "baixo" ou a travar o caminho para cima. E como se passa sempre
nestes casos não faltam pessoas, muitas por interesse ou elitismo – isso
sim verdadeiro elitismo –, a ajudar a manter o estado de coisas. Aqui,
como em muitas outras matérias, há também uma "luta de classes" latente,
que encontra um "ópio" (e uso deliberadamente uma das expressões mais
viciadas que há) neste embrutecimento colectivo. Com uma classe média a
afundar-se na proletarização, dificilmente seria de outra maneira. Mas
não há problema, vem aí o futebol…
IN "SÁBADO"
02/09/16
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