24/04/2016

MANUEL SÉRGIO

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Pinto da Costa 
num tempo adverso

A desigualdade entre os homens e as instituições constitui uma das mais revoltantes realidades da vida: uns têm tudo; outros não têm nada; uns nascem com maravilhosos dotes intelectuais e de vontade, outros surgem neste mundo patetas e abúlicos, a precisar de apoio desinteressado uma vida inteira. Por isso, são gritantes também as desigualdades entre os clubes de futebol: uns parecem nadar em dinheiro; outros nem tanto e outros ainda padecem dificuldades de toda a ordem. Num claro compromisso do jornalismo com o bem comum, sabemos (desta feita pelos Panama Papers) que o dinheiro não falta.

Só o que está escondido, em contas offshore, nos inúmeros paraísos fiscais, acabava com a pobreza que grassa pelo mundo. Todos nós, os que não temos contas em offshores e, sobre o mais, somos perseguidos e crucificados pelo fisco, deveremos exigir um rastreio rigoroso aos dinheiros que saem dos diversos países. Porque (repito-me) dinheiro há mas, por práticas anti-sociais e anti-éticas e beneficiando de uma descarada impunidade, ele está nas mãos de poucos que dele fazem o que (caprichosamente) bem entendem. E assim as desigualdades acentuam-se e os problemas, daí advenientes, são mais éticos e políticos do que económicos e financeiros.

Também no futebol de altíssima competição há clubes pobres e remediados e ricos. Os nossos Benfica e Sporting e Porto estão entre os remediados. O que o Benfica alcançou, na Liga dos Campeões, de 2016, é normalmente o máximo a que pode chegar, hoje, um dos “três grandes” de Portugal. Real Madrid, Atlético de Madrid, Bayern de Munique, Manchester City e Barcelona (e fico-me por aqui) têm jogadores incomportáveis às “posses” dos nossos maiores clubes. E, assim como uma boa orquestra necessita de bons executantes, também uma equipa de excelência precisa de jogadores que possam concretizá-la.

André Pipa, no jornal A Bola (2016/4/11) escreveu: “Cláudio Ranieri chorou no final do jogo em Sunderland e vai chorar muito mais, quando o Leicester consumar aquela que ficará como uma das maiores proezas da história do furebol inglês: ganhar a Premier com uma equipa de tostões, em compita com alguns dos clubes mais ricos do Mundo. Faltam três vitórias para o minorca Leicester se sagrar campeão de Inglaterra, 38 anos depois de o mago Brin Clough conduzir o pequeno Nottingham Forest ao título inglês (1978) e a uma extraordinária dupla vitória na Taça dos Campeões Europeus (1979 e 1980). O paralelo é evidente. O Leicester é o herdeiro do epifenómeno Forest”. A conquista da Liga dos Campeões, por um dos “três grandes” portugueses, em 2016 e nos anos mais próximos, não me parece provável... embora seja possível, evidentemente. Nem outra coisa o tempo consente.

Aos 78 anos de idade, Jorge Nuno Pinto da Costa parte, de alma em festa, para o 14º. mandato na presidência do F.C.Porto. Conciliábulos discretos afirmam convictos que o crepúsculo se adensou, no Dragão, precisamente porque a idade já não permite ao presidente a liderança de êxitos, como os que sonhou e realizou em anos findos. Para o Hegel, a ave de Minerva (a ave da sabedoria) só levanta voo ao entardecer. Ora, Jorge Nuno Pinto da Costa vive o seu entardecer e, depois de tantos êxitos, sabedoria não lhe falta para (e sirvo-me de uma expressão de José Eduardo Franco) a “constru(cria)ção” de um novo F.C.Porto. De certo, já concluiu que as vitórias do passado são inseparáveis de uma “circunstância” que não volta mais. O que se lhe pede, portanto? Inovação e criatividade. Importa criar entusiasmos e motivações para agir, potenciar energias e conjugar esforços em torno de uma tarefa comum, mas que a preservação de valores fundamentais não signifique moleza, repetição, acomodação, enroupadas em considerações de prudência, diante de qualquer posição de vanguarda.

Um outro risco, que não é o menor de todos, bem típico dos latinos, reside no voluntarismo, na arbitrariedade, no amiguismo dos detentores do poder. Na Sociedade do Conhecimento, que é a nossa, a bondade de uma decisão resulta da sua “adequação ao real” e portanto deverá fundamentar-se nas propostas de verdadeiros ”trabalhadores do conhecimento”. O que é o conhecimento? É a informação que resulta na prática, por outras palavras: que a prática iniludivelmente confirma. Quando dialogo com algum treinador de futebol, começo logo por acentuar, o que venho repetindo, ao longo dos anos: “Eu sou, única e simplesmente, um estudioso de filosofia e de epistemologia. De futebol, não sei, embora tenha já realizado com alguns treinadores de futebol um trabalho interdisciplinar. Mas, na interdisciplinaridade, há o encontro entre duas áreas do conhecimento e o futebol não é a área em que tento especializar-me”.

É verdade que “toda a teoria, seja macro ou micro, situa-se aquém e além dos limites de uma disciplina. O ensino que não reconhece esse caráter processual tende a transformar os conhecimentos científicos em doutrinários” (AA. VV., coordenação de Carlos Pimenta, Interdisciplinaridade, Humanismo, Universidade, Campo das Letras, Porto, 2, 004, p. 19). Por isso Karl Popper advertia que deveria estudar-se problemas e não tão.só disciplinas, dado que, no estudo das disciplinas, nem sempre se tem em conta a necessária interdisciplinaridade. A medicina é mais do que medicina, o direito é mais do que direito, a física é mais do que física e... o desporto é mais do que desporto. E é por ser mais do que desporto que a interdisciplinaridade se torna indispensável, na teorização e na prática do desporto. Com deficiência de informação, não é possível governar um clube como o que Pinto da Costa e Pedroto, há 34 anos, idealizaram e criaram. Com muito amor, mas também com uma admirável sabedoria!

Sendo embora um lisboeta, mereci a confiança e a estima de José Maria Pedroto e de Jorge Nuno Pinto da Costa.e pude acompanhar, como simples espectador, o renascimento do Futebol Clube do Porto, por estes dois homens inicialmente liderada e, pelo passamento de Pedroto em 1985, por Pinto da Costa concretizada. Pedroto, se ainda vivo fosse, seria hoje um dos maiores treinadores de futebol do mundo. Quando de mim se aproximou, em 1979 e durante mais cinco anos, questionou-me com temas que no INEF, em Lisboa, se começavam a estudar como novidade absoluta: “Por que diz que o desporto é uma ciência humana?”. E esta questão que o trazia inquieto: “E por que diz que é bem possível que o treino esteja errado?”. E, delicado, a meia voz, perguntava: “E quem foi Descartes e qual o erro deste filósofo de que o Manuel Sérgio fala?”. Pedroto era um homem que sabia que não sabia, ou seja: era um sábio. Doutor sem capelo e sem anel, preparava-se para um magistério inapagável, no futebol (e quiçá no desporto) português, quando a morte o levou. Com 83 anos de idade, é meu dever de consciência realçar a competência e a curiosidade de José Maria Pedroto e a sua fidelidade ao atual presidente do Futebol Clube do Porto: “Sem o Jorge Nuno, nunca estaria no F,C,Porto. Ele é o presidente de que o Porto precisava”.

E concluía: “E vai precisar ainda durante muitos anos”. Mesmo num tempo adverso, de novos e inesperados paradigmas e em que o Benfica, tendo ao leme também um presidente, como outro não teve ao longo da sua história, tomou o caminho de muitos êxitos e de vitórias inesquecíveis. Mas eu só queria dizer, neste meu artigo, que o breve clima de derrotismo e de negação que se instalara, no Dragão, morreu, no passado domingo. E que um dia de Jorge Nuno se dirá o que eu venho dizendo de José Maria Pedroto: era um homem que sabia que não sabia...

Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto
 
IN "BOLA" 
19/04/16 

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