ESTA SEMANA NA
"VISÃO"
"VISÃO"
"O açúcar é o maior veneno
que damos às crianças"
Questõe levantadas na eportagem da SIC com a participação da pediatra Júlia Galhardo, responsável pela consulta de obesidade no Hospital de Dona Estefânia, em Lisboa, e que usa palavras fortes para se referir ao abuso do açúcar em idades precoces: "maus tratos"
Somos o que comemos
Quando as crianças não têm excesso de peso é mais difícil que as famílias percebam os perigos do açúcar em excesso?
Sim.
Os pais não devem ficar descansados quando o seu filho, que come muitos
doces, é magro. Muitos desses meninos, que são longilíneos, têm
alterações dos lípidos no sangue, têm problemas de aterosclerose. Não
são gordos, mas têm alterações metabólicas. Nem tudo o que é mau se vê.
Nem tudo o que é mau dói. A hipertensão não dói, a diabetes não dói. Não
doem, mas matam. E, mesmo quando existe excesso de peso, os pais não
dão a devida importância. Acham que a criança vai esticar quando
crescer, como se fosse plasticina, e que o problema vai desaparecer. Só
começam a perceber que há, de facto, um problema quando as análises dão
para o torto. Quando o colesterol ou os glícidos ou o ácido úrico vêm
aumentados, quando as análises revelam inflamação...
.
E as crianças que segue na consulta de obesidade têm, frequentemente, problemas nas análises?
Mais
de 90 por cento das vezes. O que eu até agradeço, inicialmente. Porque é
a única forma que tenho de mostrar aos pais que alguma coisa não está
bem. Eu ajudei a começar esta consulta em 2006. Estamos em 2015 e vejo
crianças mais obesas, com maiores problemas nas análises e em idades
mais precoces. Ontem vi uma criança que tinha 10 meses e pesava 21
quilos. Tenho adolescentes com diabetes tipo 2, com hipertensão, com
colesterol elevado. Patologias que, quando eu andava na faculdade, eram
ditas de adulto, na pediatria não se falava! Surgiam aos 40 anos,
agravavam aos 60 e tinham consequências mesmo palpáveis aos 80. Esses
problemas são cada vez mais precoces e cada vez têm consequências mais
graves. Quanto mais precocemente surgem, mais graves se tornam.
Como é que se explicam mudanças tão significativas no espaço de uma geração?
Traduz
toda uma modificação ambiental, porque a genética não muda numa
geração. Se tiver dois gémeos, iguaizinhos, monozigóticos - em que o
genoma é precisamente o mesmo - e os sujeitar a ambientes diferentes,
eles vão desenvolver problemas diferentes. Fazer menos e comer mais, foi
isto que mudou no ambiente que nos rodeia. E comer mais erradamente.
Come-se mais do pacote da prateleira. Produtos em que, além daquilo que
parece que lá está, estão inúmeras coisas que os pais não identificam.
Por exemplo?
Os
açúcares. Os pais só identificam a palavra "açúcar". Se eu lhe chamar
glícidos, dextrose, maltose, frutose, xarope de milho... Tudo isso é de
evitar, mas os pais não identificam isso como açúcar. E a quantidade de
açúcar que as crianças ingerem, diariamente, é assustadora. Tudo o que é
processado e vem num pacote tem açúcar. Basta olhar para o rótulo. Se
eu não conseguir ensinar mais nada na minha consulta, consigo ensinar,
pelo menos, que é importante olhar para o rótulo. E que o ideal é
escolher produtos sem rótulo, sem lista de ingredientes: aqueles que
vieram da terra ou do mar ou do rio. É a melhor forma de evitar o
açúcar.
Costuma envolver os avós, a família alargada, nas consultas?
Os
avós têm um papel fundamental! Os avós são do tempo em que não havia
esta parafernália do pacote. O doce era o mimo do dia de festa. Mas
transformam este mimo num bolo ou num chocolate todos os dias. Porque...
"coitadinho do menino". Eu peço aos avós, por favor, que transformem
estas coisas em mimos de abraços, de afetos. Que vão com eles ao parque
brincar, ver o pôr do sol, fazer castelos de areia. Que os ensinem a
cozinhar coisas saudáveis. A fazer pão, salada de frutas. Eu aprendi a
fazer pão com a minha avó e ainda hoje me lembro. Peço aos avós que nos
ajudem a modificar esta carga. E que percebam que, hoje em dia, o maior
inimigo dos seus netos é o açúcar. A comida não é castigo nem prémio.
Começa a ser frequente ouvir especialistas dizer que, um dia, olharemos para o açúcar como olhamos hoje para o tabaco. Concorda?
Eu
acho que ainda é pior. O açúcar, em termos neurológicos, e de
neurotransmissores, e de prazer, e da precocidade com que é introduzido,
tem consequências mais nefastas do que o tabaco. A frutose, a dextrose,
todos os açúcares criam dependência. Entramos no domínio dos recetores
cerebrais, no domínio do prazer, da compensação, do conforto. Se eu me
habituar a consumir açúcar e a ter prazer pelo açúcar, há modificações
epigenéticas - genes que são acionados e que fazem com que eu passe a
ter mais tendência para o açúcar. Ou para o sal. E a mesma dose não
surte o mesmo efeito a longo prazo. Portanto vou aumentando o açúcar.
Qual é o limite máximo, se é possível responder a isto, que uma criança deve consumir de açúcar por dia?
O
mínimo possível. Não tenho número para lhe dar. E quanto mais tarde,
melhor. É óbvio que precisamos de açúcar, nomeadamente de glicose,
porque é esse o nosso combustível. É a nossa lenha celular. Mas não é
disso que estamos a falar quando dizemos a palavra açúcar.
Os açúcares de que precisamos estão presentes nos alimentos.
Claro. Nos cereais, no leite e derivados, nas frutas.
Como é que explica, às crianças e aos pais, os efeitos do açúcar na saúde?
Aos
mais pequeninos costumo dizer que o açúcar é um bocadinho venenoso. Aos
pais explico que o açúcar adicionado causa os mesmos problemas
metabólicos que o álcool. Lembro que o álcool vem, precisamente, do
açúcar. Do açúcar dos tubérculos, do açúcar das frutas. E que a
consequência é exatamente a mesma: o chamado "fígado gordo". A curto
prazo traduz-se em alterações nas análises. Mais tarde traduz-se em tudo
aquilo que contribui para o síndrome metabólico: diabetes tipo 2,
hipertensão arterial, alteração do colesterol no sangue, aumento do
ácido úrico. E, a longo prazo, tudo isto se traduz em alterações
cardiovasculares. Enfarte precoce do miocárdio, acidente vascular
cerebral... São doenças que os pais associam aos pais deles.
E não aos seus filhos.
E
não aos seus filhos. Mas, se assim continuarem, vão presenciá-las nos
filhos. Estarão vivos, ainda, para as presenciar nos filhos. Porque um
adolescente que é diabético tipo 2, 20 anos depois vai ter problemas
desta diabetes. E, se for uma menina, é exponencial, porque vai gerar um
bebé neste ambiente intrauterino. Em que a própria carga genética --
que não é alterada, porque genes são genes -- vai ser ativada ou inibida
de acordo com o ambiente que lhe estamos a dar in utero. É assustador.
Estudos
recentes, como o EPACI Portugal 2012 ou o Geração 21, mostram que as
crianças portuguesas começam a consumir doces muito cedo, a partir dos
12 meses. Aos 4 anos mais de metade bebe refrigerantes açucarados
diariamente e 65% come doces todos os dias. É por falta de informação?
Alguns
pais ficarão chocados, mas há uma expressão para o abuso do açúcar em
idades tão precoces: maus tratos. Os meninos já não sabem o que é água.
Os meninos, ao almoço e ao jantar, bebem refrigerantes. Não acredito que
seja falta de informação. Toda a gente sabe que bolachas com chocolate,
leite achocolatado, gomas, bolos, estas coisas, fazem mal. É a
ambiência, é o corre-corre. É porque é mais fácil ir no carro a comer
bolachas e sumo, a caminho da escola. Para alguém que já se deita muito
tarde, porque tem tarefas sobreponíveis, pode ser difícil acordar meia
hora mais cedo para preparar um bom pequeno-almoço.
Como é um bom pequeno-almoço?
Deve
ter três componentes: fruta, um componente do grupo dos cereais e leite
ou derivados. Quando a criança tem mais de 3 anos, estamos a falar de
produtos meio gordos. Os cereais podem ser, por exemplo, papas de aveia,
pão fresco ou torradas. Pão da padaria, não é pão de forma. Porque o
pão de forma tem, além de imensos aditivos, açúcar. O pequeno-almoço
deve ser variado, ao longo da semana, e deve garantir 20 a 25% da
quantidade diária de calorias. Nem um por cento das pessoas faz isto. E o
stress é o centro de toda esta nossa conversa. É o centro de todas
estas alterações que nós estamos a sofrer. Porque os pais não têm tempo,
porque chegam a casa e estão estoirados. Não há tempo para ser criança,
não há tempo para ser pai. Para estar à mesa meia hora a contar o dia
de cada um. As nossas crianças não dormem o que deviam. A sociedade
moderna está a adoecer os seus cidadãos.
Os médicos têm suficiente formação sobre nutrição?
Não.
Só se a procurarem. Se não a procurarem, não têm. Falo-lhe do meu
curso, que foi há uma década, e falo-lhe de agora. Apesar de haver
alguma modificação, não é suficiente. A nutrição é vista como
secundária. Não é fármaco, não é vista como tratamento. Mas é. Por
exemplo, após uma cirurgia, se não houver uma nutrição adequada, o
organismo não consegue organizar o colagénio e tudo o que favorece o
processo de cicatrização, para sarar. Na oncologia, por exemplo, há
muito cuidado em várias terapias, mas muito pouco cuidado na parte da
nutrição. A alimentação está na base da saúde e da doença.
É favorável a taxas sobre os produtos mais açucarados, como acontece em países como França, Hungria ou Finlândia?
Para
não criar tanta polémica: e se deixássemos de taxar aqueles que são
frescos, por exemplo? Peixe. Fruta, nomeadamente a portuguesa. Os
legumes, os hortícolas. O nosso leite dos açores. Com tudo isto, é
possível fazer refeições saudáveis para os meninos. Mas, se vir o IVA
dos seus talões de supermercado, poderá constatar que há coisas que não
deveriam ser taxadas ao nível que são.
Por exemplo?
Alguns
refrigerantes são taxados a seis por cento. Mas a eletricidade e o gás,
por exemplo, estão à taxa mais alta. Consegue cozinhar sem eletricidade
e sem gás? Não é um produto de luxo. Às vezes sentimo-nos a puxar
carroças sozinhos. E nós contra a indústria não temos muita força. Eu
gostaria de perceber porque é que é permitido oferecer brinquedos com
alimentos que são considerados nefastos. Pior: brinquedos colecionáveis.
O problema é que cada governo preocupa-se a quatro anos. E os
ministérios trabalham cada um por si.
O Ministério da Educação
reduziu, em 2012, a carga horária de Educação Física no terceiro ciclo e
no ensino secundário. E a nota de Educação Física deixou de contar para
a média de acesso ao ensino superior.
Pior do que reduzir as
aulas de educação física, é vê-las como supérfluas. Eu vou-lhe
confessar: eu era péssima. Era um desastre. E também era obesa.
Portanto, estou à vontade para falar disto. E digo isto aos meus
doentes, porque acho que os estimula. Tenho saudades de crianças que
esfolavam os joelhos em cima do que já estava esfolado. Não vejo isto
hoje em dia. Não é que goste de ver meninos magoados. Mas significa que
estão quietos. Quando muito, têm tendinites nos polegares, que vai ser a
doença ortopédica do futuro. E miopia.
Estive três anos num
hospital no Reino Unido, onde via adolescentes, sem patologias de base,
com obesidade simples, deitados numa cama, que nem banho conseguiam
tomar. Nós sabemos isto. Não há falta de informação, há inércia. Eu não
queria que o meu país fosse para aí, não queria que a geração que vem a
seguir a mim fosse para aí.
E está a ver o país ir para aí?
Estou.
E não há prevenção, não há comportas. Estou a tentar montar um projeto
para chegar aos pais e às crianças nos jardins de infância e nas
escolas. Sinalizar para os centros de saúde, através da saúde escolar,
crianças que estão a começar a ter peso a mais. A este hospital só
deveria chegar a obesidade que tem uma causa endócrina, genética, ou
que, não a tendo, já tem consequências. Mas há centros de saúde que nem
nutricionistas têm. Isto, a longo prazo, paga-se com juros. Basta fazer
contas. Basta ver a carga que são as consultas de obesidade, que eu já
não sei o que hei de fazer a tanta consulta que me pedem. Uma consulta
hospitalar de nível 3, como esta, tem um custo. Pais que faltam ao
trabalho para vir com os meninos tem um custo. Fora as consequências que
vêm por aí. A obesidade é a epidemia do século XXI. Mas como, ao
contrário das infeções, o impacto não é imediato -- é a 10, 20, 30 anos
-- ninguém olha para ela como tal.
Só quando se transformar na epidemia
de doença, e não na epidemia de caminho para a doença, é que vamos
tentar travar. Mas já não vamos travar nada, porque já tivemos o
acidente completo. E aí vamos gastar o dobro. E já nem estou a falar só
de saúde e de vida. De anos de saúde e de vida que se poderiam poupar.
Falo da questão monetária, porque parece que é aquilo que as pessoas
entendem melhor atualmente.
*Faltam-nos as palavras para dizer obrigado a esta médica.
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