ESTA SEMANA NA
"SÁBADO"
Toda a história da fábrica de meias
que ganhou a guerra dos swaps
E a da Fábrica dos Papéis dos Cunhas, a única que repetiu a proeza. Os bancos foram condenados a pagar aos clientes – num dos casos, 2,2 milhões de euros
Álvaro Costa chegou a ser um dos empresários mais bem-sucedidos de
Barcelos. Na altura em que um funcionário do BBVA o visitou para lhe
propor um contrato de swap, em 2008, o negócio, então com duas
décadas, não parava de crescer. A Faria da Costa – Peúgas e Confecções
já aquecia pés em 14 países da Europa. A fábrica produzia 20 mil pares
de meias por dia e facturava 3 milhões de euros por ano. "Como corria
bem, decidimos ampliá-la e fizemos um empréstimo", conta Álvaro Costa à
SÁBADO. O empresário estava optimista. Afinal, iam longe os tempos em
que, para exportar para a Noruega, tinha de aproveitar a viagem de
regresso dos camiões que chegavam carregados com bacalhau (sim, o cheiro
continuava lá).
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UM HERÓI |
O swap entra na história uns dias depois da assinatura do
contrato de leasing, feito para ampliar as instalações. "O funcionário
do BBVA dizia que era uma forma de me proteger das taxas de juro, que
estavam a subir", acrescenta. "Eu percebia de meias, não percebia de
juros. Assinei." Isso havia de custar-lhe várias noites sem dormir. O
acordo fixava a taxa em 4,55% – se a Euribor subisse até 5,15%, o banco
pagava ao cliente a restante parte; se descesse até 3,95%, era o cliente
a pagar ao banco. Quando a Euribor desceu drasticamente, o swap
passou a custar entre 1.700 e 2.000 euros por mês. "Era insustentável",
diz. Tentou cancelar o contrato. "Pediram-me mais de 50 mil euros.
Tentei negociar, mas nunca se mostraram disponíveis." O BBVA não
comenta. Álvaro não desistiu.
Durante meses, falou do caso a
amigos. "Um deles sugeriu-me um advogado, que me disse que tínhamos
hipóteses de ganhar em Tribunal." E ganharam mesmo. A 10 de Outubro de
2013, o Supremo Tribunal de Justiça anulou o contrato de swap
celebrado entre o BBVA e a Faria da Costa e condenou o banco a restituir
à empresa 44,7 mil euros, mais juros e custas do processo – no total,
perto de 100 mil euros. A vitória da Faria da Costa contra o banco foi
histórica – até agora, só se repetiu uma vez (já lá vamos). Por isso,
assim que a decisão foi conhecida, Carlos Lages, advogado de Álvaro
Costa, recebeu inúmeros pedidos de ajuda. "Fui contactado por mais de 60
em presas que haviam celebrado contratos deste tipo", diz.
O banco tem (quase sempre) razão
A regra não tem
sido a Justiça dar razão ao cliente. A 4 de Março, o Tribunal de Londres
considerou válidos os nove contratos de swap entre o Santander
e as empresas públicas Metro do Porto, STCP, Metropolitano de Lisboa e
Carris. Ao todo, o Supremo já tomou posição sobre oito contratos de swap
com empresas privadas – em alguns casos avaliou o negócio, noutros
decidiu se seria ou não competente para julgar o assunto. Embora o
fenómeno seja transversal à banca, sete destes casos são de clientes do
Santander Totta. O banco diz à SÁBADO que ainda há cerca de uma dezena de outros processos a decorrer.
As empresas têm alegado que os contratos eram "meramente
especulativos", que o banco não cumpriu o "dever de informação" e que
tinha havido uma "alteração anormal das circunstâncias" (ou seja, que as
taxas de juro tinham começado a cair, ao contrário do que lhes tinha
sido dito ser previsível quando assinaram o contrato). A maioria exigia o
cancelamento dos contratos e o reembolso dos juros já pagos. Para a
economista Isabel de Oliveira e Sousa, advogada estagiária e
especialista em mercados financeiros, as vitórias do banco têm uma
explicação: "Os Tribunais não discutiram a natureza do produto, se o que
se propôs aos clientes foi ou não um swap – em muitos casos
não foi, porque havia barreiras a limitar os ganhos potenciais", diz à
SÁBADO. Na perspectiva da economista, os contratos "não permitiam aos
clientes, de facto, cobrir o risco, quer a taxa de juro subisse ou
descesse". A Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) teve a
mesma opinião.
Uma vitória milionária
O Santander e a Fábrica dos Papéis dos Cunhas têm versões diferentes sobre o que se passou. Alerta spoiler
(ou desmancha-prazeres, em português): no fim, o Supremo dá razão ao
cliente e condena o banco a devolver-lhe os 1,5 milhões de euros pagos
no âmbito de três contratos swap – mais juros, claro (2,2
milhões de euros ao todo). Foi o único caso que o Santander perdeu. Pelo
meio, e com a ajuda de uma liquidação de impostos de 9 milhões de
euros, que ainda está a ser contestada em Tribunal, a empresa entrou em
insolvência.
Os quatro filhos do fundador, que têm entre 35 e 45 anos, estavam
entre os 70 funcionários. Geriam a fábrica. Um deles, formado em
Auditoria, era responsável pela área financeira. Todos ficaram
desempregados. Dois deles continuam nessa situação, um em Portugal,
outro emigrado. O terceiro acabou por abrir um ginásio e o quarto tem um
pequeno negócio de venda de artigos de papel.
"O banco também lhes disse que, subscrevendo o produto, seria mais
fácil obterem um financiamento futuro", diz à SÁBADO o advogado Pedro
Marinho Falcão. O Santander nunca assumiu que tomou a iniciativa de
apresentar o produto ao cliente. Em Tribunal lembraria que a mesma
empresa já tinha feito, ao todo, incluindo outros bancos, 22 contratos
de swap, tendo obtido lucros em 14 deles.
Vários empresários descreveram à SÁBADO um processo semelhante: o
banco apresentou-lhes o produto e aconselhou-os a subscrevê-lo. O Totta
não comenta. O Supremo consideraria que os swaps subscritos pela Fábrica
dos Papéis dos Cunhas podiam comparar-se a um "jogo de azar" – a sua
natureza especulativa era uma "ofensa importante à ordem pública".
Concluiria ainda que o banco "não agiu como mero intermediário
financeiro".
Depois de uma primeira decisão na Justiça dar razão aos Cunhas, o
Santander mudou de escritório de advogados – contratou a Uría
Menéndez-Proença de Carvalho, um dos maiores do País. A primeira
dificuldade com que Marinho Falcão se deparou quando começou a trabalhar
neste caso foi a falta de informação: "Pesquisávamos swap no Google e
não aparecia nada sobre Portugal – só casos em Itália e Espanha",
recorda.
Este advogado teve em mãos quase metade dos processos de empresas
sobre os quais o Supremo já se pronunciou – mas isso não lhe garantiu
outras vitórias. "O tema é muito complexo". No caso de outra fábrica de
papel, a Dogel, de Ermesinde, "com base exactamente nos mesmos
argumentos", o Supremo tomou uma decisão contrária à do caso da Fábrica
dos Papéis dos Cunhas. "No processo dos Cunhas, ganhámos com um voto de
vencido. Ou seja, um juiz conselheiro considerou que, por ele, o banco
ganhava o processo. Com a Dogel aconteceu o oposto – o juiz que
considerou que a empresa tinha razão estava em minoria", explica. Para o
Tribunal, apesar de o contrato ser "meramente especulativo", é
"plenamente válido".
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200 reclamações à CMVM
Desde 2009, a CMVM recebeu 187 processos de reclamação sobre swaps
– só sete continuam por resolver, revelou o regulador à SÁBADO. Num
documento da CMVM, a que a SÁBADO também teve acesso, o regulador
responde a 114 reclamações de clientes do Santander Totta, sobre
contratos celebrados entre 2006 e 2009. O regulador dá razão aos
clientes – e é muito duro nas críticas ao banco. Reprova "o
comportamento desleal" e "a violação da confiança depositada pelo
cliente-investidor", cujo interesse, diz, "deveria ter sido prosseguido"
e não, como a CMVM entende que foi, infligido para "obter uma vantagem
pessoal (ou de terceiro)".
O regulador levanta a hipótese de ter havido conflito de interesses. É que num swap,
"um ganho para uma parte implica uma perda para a contraparte". A CMVM
considera ainda que o produto é "especialmente complexo, meramente
especulativo" e desigual. Defende que ele implica "uma clara
desproporção entre o benefício que supostamente o cliente pode receber
com o produto e aquele que pode ser obtido pelo banco".
Nenhum dos 45 contratos pendentes na altura em que esta resposta foi
enviada a quem reclamou (as restantes queixas tinham sido concluídas por
"acordo ou desistência"), a 23 de Novembro de 2011, incluía barreiras
para proteger o cliente em casos de descida das taxas de juro. Mais: a
informação prestada aos clientes "não [era] clara, completa e verdadeira
sobre as características e os riscos dos produtos".
O regulador também defende que a informação que constava dos
contratos não coincidia com a que tinha sido fornecida antes do negócio –
nomeadamente sobre a expectativa de subida da taxa de juro: "As
condições do contrato não vão ao encontro das próprias previsões do
Banco Central Europeu e dos analistas quanto à expectativa geral do
mercado." Também nenhum desses contratos "inclui informação que permita
ao cliente quantificar as perdas financeiras máximas nem determinar a
ordem de grandeza do valor a pagar em caso de resolução antecipada".
O regulador concluiu ainda que, para a generalidade dos clientes, o valor dos swaps
era "claramente desproporcionado face ao capital social". E dá um
exemplo: uma empresa com capital social de 5 mil euros contratou um swap
com valor de 5,5 milhões de euros, que resultou em perdas de cerca de
140 mil euros. Esse não foi o único aspecto em que, segundo a CMVM,
houve desigualdade entre as partes: a generalidade dos queixosos tinha o
9º ano de escolaridade – ou menos. O Santander conhece o documento e
enquadra-o numa fase inicial do processo. O que ali é dito, explica o
gabinete de comunicação, "foi depois objecto de esclarecimentos por
parte do banco". E "na grande maioria" dos casos chegou-se a acordo.
Acordos antes do Tribunal Nem todos os casos foram decididos na
Justiça – alguns clientes chegaram a acordo com os bancos antes. A
SÁBADO sabe que no caso do Santander foram mais de 80%. "Quando as taxas
de juro desceram significativamente e as empresas começaram a ter
dificuldade em cumprir os contratos, houve abertura do banco para
procurar alternativas", garante o Santander.
A solução foi discutida caso a caso. Em 2010, uma empresa familiar de construção civil com um swap
de 1,5 milhões de euros chegou a acordo com o Santander Totta em cerca
de três meses e quatro reuniões, todas na sede do banco. Os prejuízos
com o produto eram de cerca de 100 mil euros – o cliente conseguiu
receber 85% desse valor. Outro empresário com quem a SÁBADO falou por
intermédio do advogado, e cuja empresa tinha o mesmo prejuízo, 100 mil
euros, mas subscrito há menos tempo, não conseguiu uma proposta tão boa.
O banco não ia além dos 50%. O empresário recusou o acordo – vai a
Tribunal.
Os entendimentos não implicaram necessariamente o cancelamento dos swaps.
Num acordo fechado em 2015, uma empresa que já acumulava prejuízos de
cerca de 500 mil euros (e que podiam ir até aos 10 milhões), o cliente
aceitou manter estes instrumentos em troca de um financiamento de cerca
de 600 milhões de euros para avançar com a construção de um
empreendimento cujos espaços já conseguira vender quase na totalidade.
Miguel Coelho, secretário-geral da Associação Empresarial de Águeda,
recebeu "centenas de reclamações" de empresas de todo o País e explica
que os empresários – mesmo os que já têm o assunto resolvido – "têm
receio de falar sobre o assunto porque continuam a necessitar de
financiamento para os seus negócios". Em 2012 – muito antes de
aparecerem os lesados do Banco Espírito Santo – empresas que
subscreveram estes produtos no Santander criaram o
emaillesados@gmail.pt, para avançarem com acções judiciais colectivas.
Agora, o endereço está desactivado. Um promotor da iniciativa disse à
SÁBADO que muitos desses negócios, na maioria familiares, acabaram por
falir. No ano seguinte, a palavra swap foi finalista da Palavra do Ano, da Porto Editora.
* Antropofagia bancária, quase é melhor ter o dinheiro debaixo do colchão.
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